Rede Globo esconde o fundamental
Por Francisco Frassales Cartaxo
O Jornal Nacional mostrou a seca no Nordeste, em três dias seguidos. Um jovem repórter, tendo em mãos o livro O Quinze, de Raquel de Queiroz, percorreu os caminhos do personagem Chico Bento, de Quixadá a Fortaleza, tentando confrontar situações e imagens do passado e as de hoje. Imagens da sequidão, terra rachada, casas fechadas, aqui e acolá uma roça verde. Citações do romance dão o toque literário à matéria. Qual o sentido disso? Comparar, cem depois, a triste realidade da seca. A mensagem é óbvia: pouco mudou. O condutor da narrativa televisiva, prisioneiro do roteiro, não fez literatura nem captou o mundo real. Coitado. Quanta badalação! Pariu um preá…
Raquel era menina de apenas 20 anos quando publicou, em 1930, O Quinze. Recorreu à memória da criança de cinco anos, marcada por cenas dramáticas vividas no sertão, misturadas mais tarde ao idealismo da adolescente, encantada com a efervescência política brasileira, então no apogeu da luta dos tenentes contra os “carcomidos” da República Velha. Isso pode ter guiado a descrição do drama dos retirantes da seca, obrigados a deixar as fazendas porque lhe faltavam água e comida. O dilema era arribar ou morrer.
As relações de trabalho pendiam para um lado só, o do latifúndio. Este também padecia com a estiagem prolongada, com a carência de açudes, de transporte para receber alimento para o homem e o gado. Perdia-se a safra de algodão, morriam vacas e touros. Abalava-se o tripé produtivo algodão/pecuária/subsistência, as famílias dos moradores (crianças, mulheres e velhos) sustentando o sistema arcaico. Mas não extirpava o perverso fundamento econômico e social. O Estado, porém, surgia para “salvar” os pobres nas “frentes de emergência”, já no governo Epitácio Pessoa, e, mais tarde, com José Américo, ministro, amparado na força da Revolução de 30. As “frentes de serviço”, fonte de corrupção eleitoral, alcançaram o auge em 1958, com o presidente Juscelino.
No longínquo 1915, a migração se fazia a pé, como narra com impressionante realismo o mestre Graciliano Ramos, em Vidas Secas.
Hoje, porém, a realidade é outra.
Nem algodão existe mais no semiárido, dizimado menos pelo bicudo e mais pela impossibilidade de manter-se o sistema de produção, escanchado na exploração das famílias rurais pobres. As casas fechadas, mostradas pela Globo como novidade imposta pela seca é mentira pura. A zona rural está despovoada há muito tempo. Faz décadas que os “moradores” foram para a ponta de rua. E isso pouco tem a ver, diretamente, com a seca. O maior problema da época d’O Quinze era o desabastecimento. Não havia comida nem água. Difícil trazer alimentos a tempo e a hora: farinha, charque, feijão, milho, sal, açúcar para alimentar o nordestino.
O que nos dias atuais leva o homem do campo a migrar são outros fatores. A falta d’água é grave, mas se resolve com carro-pipa. (Algo impossível antes, quando não havia açudes nem poços profundos nem estradas). Hoje o alimento chega rápido. O Bolsa Família e outros programas de transferência de renda dão vida aos mais pobres. Hoje ninguém morre de fome. Com três anos de seca braba, quase não se vê no sertão gente a mendigar um prato de comida, cena comum no passado.
Isso a Rede Globo não mostrou.
Escondeu o fundamental. Preferiu camuflar a realidade em seus eficientes recursos técnicos, trocando a essência pelo secundário, o banal navegado nas páginas d’O Quinze, para mexer com o orgulho cearense. E nos ludibriar. A Rede Globo desinforma. E deforma.
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