Quadrilha no clube social
As mãos já não eram grossas pelo uso do cultivador, da enxada, do machado e da foice. Fazia tempo que ele deixara a lavoura para tentar a vida na cidade. Até começava a enxergar as coisas com o olhar da cidade. Pouco a pouco, o matuto do pé-de-serra ia dando lugar a outra pessoa, agora que morava na rua. Plantar é bom, não me queixo nem me arrependo, mas vender é melhor, pensava, enquanto embrulhava uma lata de doce em papel ordinário à vista da freguesa. Fizera progresso, todo mundo notava, contudo, faltava chegar perto da sociedade, dos que iam de carro à missa do domingo, às festas no clube.
Seu Heriberto também frequentava a igreja, onde observava as madames, bem vestidas, sentarem-se em cadeiras forradas ou nos bancos das primeiras filas. Perto do padre, junto dos santos e de Deus, matutava com ele mesmo. Ele, não. Ele continuava lá atrás que nem na época que vinha do sítio, em dia de festa, sapato engraxado, calça nova, camisa de manga comprida, chapéu de palha. Ele e a família toda.
Essas coisas estavam ficando para trás.
Heriberto não cometera a besteira de Michico, que vendeu um pedaço de chão, comprou uma casinha na ponta da rua, botou na sala da frente uma bodega para vender cachaça, fubá, charque, sabão, querosene, bolacha, caixa de fósforo, mariola… Ele, não. Instalou a bodega perto do centro. No começo, vendia as miudezas que nem Michico. Aí pegou a observar. E a ouvir. Sobretudo a ouvir. Seu Heriberto, o senhor tem manteiga Itacolomy? Tem copo de plástico? Vende guarda-chuva? Sabia escutar: você devia, Heriberto, arriscar vender vinho de mesa, quem sabe, tem saída, esse povo daqui gosta de se amostrar… saí do conhaque São João da Barra e mete a cara no vinho, feito gente rica.
Heriberto escutava tudo.
Um dia, parou um caminhão com placa de Campina Grande, carregado de mercadoria. Ele olhou, conferiu, o sangue indo e vindo depressa nas veias.
– Querer eu quero, mas quem sou eu… é muita carência…
– Ora, ora, seu Heriberto, eu lhe fio, deixo a mercadoria em confiança, você me dá o que puder e da próxima vez a gente se acerta.
Heriberto coçou a cabeça, pigarreou.
– Seu Herinberto, um ponto desse é uma mina e este ano o algodão vai tá com o preço lá em cima… quer saber? Fale com o major Galdino!
Num relance a mente do bodegueiro se encheu de lembranças dos anos de safra boa e preço alto do algodão: roupa nova, calçado novo, chapéu de massa, até cerveja o pai bebia todo ancho…
– Então eu topo.
Subiu no caminhão e foi separando um pouco de cada coisa, a filha atenta, escrevendo no caderno. E o motorista-dono do caminhão conferindo uma por uma. Isto faz tempo. Agora, Seu Heriberto ruminava o sucesso, no exato momento em que ajeitava a gravata espalhafatosa, a camisa quadriculada, a calça de brim, na imitação grotesca dele mesmo. Era a primeira vez que ele ia entrar no clube social. Nunca pensou que poderia dançar quadrilha, num ambiente daquele, arrastar os pés, pegar na mão de senhoras da sociedade feito fazia com as meninas nas latadas de festa no sítio.
Que São João!
Dia seguinte, Heriberto, não parava de falar da bondade da festa. Festa democrática, repetia eufórico o que ouvira. Dono de bodega, dançando quadrilha no salão com gente da sociedade… sabe com quem dancei quadrilha, ontem, diz aí, advinha… advinha nada… um pé rapado que nem eu!
E nada mais disse, ainda trêmulo por ter apertado em suas mãos a mão daquela senhora…
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