Porões e barreiras do não
Por Mariana Moreira
Os fétidos porões dos negros navios ainda exalam os odores dos corpos desnudos e famélicos que se misturam com ratos, excrementos, cadáveres insepultos, num dantesco espetáculo que, distante, numa dimensão temporal, se atualiza em manifestações diversas que personificam um país mergulhado em um torvelinho de práticas fascistas, genocidas, homofóbicas, aporofóbicas.
Corpos que definham, física e humanamente, em senzalas, favelas, cortiços, mocambos, viadutos, praças. Excluídos, invisibilisados, apagados de quaisquer vestígios de gente, e convertidos em alvo predileto de políticas e ações, oficiais e “espontâneas”, de limpeza. São eliminados pelo assassinato impune, pela fome crônica, pela droga e pelo álcool que aliena o sofrimento, pelas barreiras arquitetônicas que os excluem do acesso a um banco de praça, a uma marquise de prédio, a um apêndice de um viaduto, a um canteiro de jardim público.
À medida que esta política de exclusão e eliminação do pobre, do preto, do favelado, do povo da rua, do dependente químico, do travesti, ganha o foro de legitimidade, pela ação de governantes, legalmente constituído e instituídos, a tarefa de exclusão, apagamento, agressão assume contornos tantos, como a mascarar e naturalizar o que, efetivamente, se constitui no mais vil e abjeto gesto de negação da condição humana.
Nos deparamos com a proliferação de outdoors, cartazes, letreiros abertos em muros e fachadas, em várias cidades de todo o país instigando a população a não “dá esmolas”, com o torpe argumento de que, o gesto cristão de acolher o necessitado com algo que sacie suas necessidades mais preliminares é um “incentivo a mendicância, ao uso de álcool e drogas”.
A inversão intencional das razões e causas do crescimento da pobreza, da exclusão social, da mendicância são borradas nas letras e tintas dos melosos apelos de que nos livraremos do “pobre ao negar a esmola. E, assim, estaremos construindo cidadania”. Um deslocamento proposital que tenta mascarar a intensa manipulação e apropriação do Estado por grupos e forças reacionárias e atrasadas que, evocando o clima e o ambiente da casa grande, escondem as dores e sofrimento da senzala em monturos, mocambos, favelas.
E, assim, negam, com a veemência de verdades falsamente construídas, que políticas públicas que favorecem a inclusão, o acesso a educação pública, o financiamento público da pesquisa, a democratização do acesso à terra como produtora de alimento, e não de mercadoria, são ferramentas promotoras de dignidade, humanidade, redução de pobreza e mendicância, vitalização do ser que se esgarça nas drogas e na depressiva perspectiva do nada.
Mas, para um estado explicitamente fascista, o argumento mais plausível é o de que estas políticas são desnecessárias, porque apenas favorecem a preguiça, a ociosidade, a mendicância e, sobretudo, a corrupção. Corrupção, não apenas de pecúnia, mas de valores morais que turvam a visão dos homens que devem sempre bradar, a plenos pulmões: “Deus acima de tudo”.
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