Poesia toda vida
Há uma mania, enrolada nos pergaminhos do tempo, que bota a culpa na poesia. Diz que isso é algo simplório. Diz que poeta é um ser desocupado. Se ele estiver concentrado em burilar o verso, não posso dizer que está sem trabalho. Na cozinha, os gêneros se misturam. Não posso concordar que a complexidade de uma fábula, por exemplo, não seja um ofício. Não posso concordar que o fabulário não contenha uma carga poética, finalizada com sua lição de moral. Que beleza é a cigarra, que beleza é a formiga.
O poema se abre para o cotidiano, para o que é pensado, para o que é construído. Sinto mais aproximação com esse devaneio: em lascas, em frascos, em carretéis. Ora, se sou capaz de chorar ouvindo o Hino Nacional Brasileiro, sobretudo na Copa do Mundo, sou vítima do acaso. Isso, para meus botões, é poesia. Toda vida.
Há outra mania, para esta vou até pedir licença: aquela que se aglomera em ritmos. Nem todo poema nasce com a melodia, mas, se as palavras vestirem essa roupa de acordes, teremos outro produto. Produto. Produto parece coisa da minha mente capitalista. Mas minha mente também é socialista, comunista, anarquista. E os neurônios vêm traduzidos como democratas, liberais, conservadores, tradicionalistas. Não quero me engalfinhar nos conceitos. Sim, podemos estudá-los. Quando tivermos lugar e hora para isso. Não quero porque, agora, gente, quero é poesia. Toda vida.
O poema não precisa de conceito. Basta escrever, sentindo, respirando alguma inquietude. Sim, pois o poeta não está sem ocupação. Lembremos. Está exalando o que de mais íntimo ou sagrado seu imaginário produziu. Fruto de uma mente consumidora de tantos sinais. Sim. É que poesia consome sentimento, grito, gargalhada, vigilância, aboio. Há tanta poesia no aboio. Há tanta poesia naquele cantarolar do tangerino, como se soubesse, de forma tranquila, dominar um idioma propício aos animais famintos ou cansados. E sabe. E faz. Parece que sempre soube.
Para o poema, é simples: precisa de ingredientes solidários. Um punhado disso e daquilo outro, mas sem deixar de contar com uma criatura importante nesse painel: o leitor. O autor pode até escrever sem saber quando sua obra será publicada. O autor pode até querer ser anônimo, por uma questão de segurança, talvez. Mas, de maneira indireta, sabe que existe alguém ali, atrás da linha, do papel, da tela. Existe alguém ali, com os olhos sedentos pela compreensão do que foi posto.
Muitas vezes, em forma de vocativo, o homenageado aparece abrindo uma estrofe. E a magia da língua é justamente esta: o homenageado pode ser mesmo qualquer um que lê o poema. Não necessariamente o personagem que ali se delineia, cria um corpo, cria um limo. É um zigue-zague de ideias, opiniões, tarjas, etiquetas, padrões, fugas. Se for registrado, em algum recanto do universo, o escrito beira a vontade de ser eterno. Faz da história o seu sustento. E assim é a poesia. Toda vida.
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