Pausa para Deia Cartaxo
Por Francisco Frassales Cartaxo
Ao refugiar-me na leitura, nesta época sombria da covid-19, deparei-me com seu nome: Deia Cartaxo. Apelido, pensei, derivado de Andreia, Dulcineia… É bem provável que tenha sido contemporânea de meu pai, que nasceu em 1887. Ora, ela já era mulher feita, quando morreu a baronesa. Com certeza era minha parente pois só existe uma família Cartaxo, no Brasil. Criada pelo português Joaquim Antônio do Couto, vindo da vila do Cartaxo direto para o Recife. Aqui se perdeu. E foi achar-se na Ribeira do Rio do Peixe, onde se instalou, casou-se, recebeu dotes. E teve muitos filhos de duas esposas, parentas do padre Inácio Rolim. Para eternizar a saudade da longínqua terrinha, acrescentou o Cartaxo a seu nome. Portanto, todos os Cartaxo no Brasil somos seus descendentes, incluindo Deia.
Eu nunca ouvira falar de Deia.
Nas reminiscências dos mais velhos ela não aparecia. Só tomei ciência que ela existiu, no dia da morte da baronesa. Ana Clementina de Soromenho Pinheiro Lobo e Figueiredo Moutinho. Com esse nome gigante, claro, trata-se de gente importante, senão seria apenas Josefa de Jesus. Morreu “viúva de um barão com grandeza, cujo patrimônio sobrevivera à corte, por meio de alguns milhares de títulos em banco e companhias sólidas.” Sua morte foi comunicada pelo sobrinho, senador, com voz de falso embargo.
“- Luís, avise a Renato que a baronesa faleceu.”
O senador e a tia Figueiredo Moutinho moravam no mesmo lar. Ela instalada no fundo do corredor, num quarto cheio de “sombra, rapé, reumatismo, pigarro, bolinhas de cânfora, sedas de gorgorão, pentes de monograma, conversa de bailes idos”. Hóspede novo, Luís quis perguntar de que doença morrera a baronesa, até ensaiou entrar no cômodo onde jazia o corpo. Ficou no vacilo, até que o senador sonorizou a pergunta:
“- Onde estará Renato?”
“- Ah, isso é difícil. A esta hora… Talvez esteja em Ipanema, (pensando: com Deia Cartaxo), ou então no Flamengo (idem: com a lituana). Vou dar uma espiada.”
Assim, eu soube de Deia. Luís fez menção de indagar alguma coisa, mas o senador recomendou urgência, pois queria Renato ali ainda pela manhã. Às pressas, Luís engoliu o pão com geleia e, em disparada, pegou um taxi. Sem muito pensar, ordenou: toque para Ipanema. Acomodado no banco traseiro, ruminou, não acredito muito em lituanas. “Renato era homem de quinze mulheres, mas com Deia é que ele devia estar. Deia, anterior a todas, continuava resistindo à deterioração do hábito.”
Luís acertou em cheio.
Renato custou a acordar, a noite fora, também, de muito álcool… A notícia do passamento da tia-avó, rica, cheia de ouro, pedras e joias preciosas, prendeu toda a sua atenção. Dele e de outros parentes, que, ávidos, corriam à casa do senador a fim de abiscoitar o quinhão ao qual cada um se julgava merecedor. O pilantra Renato chegou atrasado. Ainda assim, não saiu de mãos abanando.
Esquecida mesmo ficou Deia Cartaxo.
Dela nada mais se falou. Quem quiser saber com que destreza agiu Renato para arrancar valiosa joia das orelhas da tia-avó terá que recorrer a Carlos Drummond de Andrade. E deleitar-se com a leitura d’“A baronesa”, inserido no livro “Contos de aprendiz” (Companhia das Letras, 2012). Foi Drummond quem fez de minha “prima”, distante no tempo e no parentesco, misteriosa personagem de sua narrativa curta. Reli, agora, para aliviar as agruras deste tempo terrível e incerto, dominado pelo novo coronavírus.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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