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Francisco Cartaxo

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Os mortos da minha infância

06/11/2017 às 10h37

Frassales é filho do grande poeta cajazeirense, Cristiano Cartaxo.

Os mortos de minha infância apareciam no dia de finados. Sempre. Nítidos ou embaçados, eles povoavam minha imaginação, mesmo antes do dia 2 de novembro, quando mandavam pintar os sepulcros. Sepulcro! A palavra batia nos meus ouvidos acompanhada de outra: santo.

Santo sepulcro, foi assim que escutei pela vez primeira na pregação do padre. Por isso, o menino Frassales achava que cemitério era lugar sagrado, de Jesus Cristo. E mais, a palavra do padre era confirmada pela voz grave do locutor da Difusora que falava de campo santo, ao ler o convite-enterro.

Os mortos se agigantavam.

Cresciam nas narrativas ouvidas no cemitério. Lugar sombrio. Tão misterioso para o menino quanto o cabaré, que ficava atrás do cemitério. Que é cabaré, papai? Lugar de perdição, meu filho, onde ficam mulheres de vida fácil, ele me disse uma vez. Não entendi. Morte e vida quase no mesmo espaço. Como conciliar no meu espírito infantil o sepulcro junto da perdição? Fui ensinado a acreditar nos padres. Padre não mente, filho. E o pai? Ora, o pai sabe tudo. Anos a fio carreguei esse mistério.

Uma mão me levava de casa ao cemitério.

Caminhada quase sem fim do norte ao sul da cidade. Minha mãe prendia a minha mão entre seus longos dedos. Agora, passados tantos anos, revivo a sensação de ir ao cemitério, a minha mão presa à mão protetora de minha mãe. Um bálsamo para as profundas angústias da velhice. Meu pai seguia de paletó e gravata preta e chapéu. (Na minha infância os adultos usavam chapéu e gravata). Entrávamos no Cemitério Coração de Maria como se fosse uma procissão de Senhor Morto. Lentos. Silenciosos. Primeiro, visitávamos o túmulo onde estavam os nossos mortos. Meu avô paterno era para mim um retrato na Farmácia Higino Rolim. De chapéu e tudo. Nada mais que isso. Mãe Nanzinha, nem isso. Era tão somente um nome perdido nas recordações de seu filho. Dona Joana Sales de Brito, a avó materna, ainda vivia. Guardo a imagem de uma velhinha, mirrada, a levantar a saia para urinar no quintal. A demência senil era a meus olhos infantes a morte antecipada.

Meus mortos!

Depois das rezas e acesas as velas na sepultura, aí sim, eu despregava minha mão das mãos dos adultos e vinha escutar, à saída do cemitério, as conversas dos homens. Só se falada em morte. Meu coração fervia! Crimes. Assassinatos. Lutas violentas, briga de foice, emboscadas, tiro de rifle, facada na barriga do cristão. Cangaceiros apareciam naquelas narrativas como bandidos. Nunca como heróis. Um dia vi passar meu primo Marechal, o da farmácia. Os homens entreolharam-se. Este aí tem crime de morte, disse um deles. Gelei. Sobrinho de Cristiano Cartaxo, assassino? Tive medo de perguntar a meu pai. Só muitos anos após vim a saber: matara um soldado da polícia.

Mortes recentes também eram revividas ainda com cheiro de pólvora ou mancha de sangue no chão. Falava-se em Baje, um remanescente do cangaço que a polícia matou e trouxe o corpo escanchado feito um porco na cangalha de um jumento. Esse eu vi passar em frente à minha casa. Outro sempre lembrado no dia de finados era o fazendeiro e comerciante Artemísio Medeiros. Havia, é claro, referências a figuras importantes falecidas de morte morrida. Na maioria, pessoas de idade. A morte do prefeito na cama da amante… Morreu feliz, debochavam do coronel…

Tudo isso um dia se apagará. Menos o calor dos dedos longos de minha mãe a segurar minha mão a caminho do cemitério.
P S – Quando morrer, não quero cinzas nas águas do Açude Grande. Quero o meu corpo ao lado de minha mãe.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

Contato: [email protected]

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
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