Os males do bem
Crônica de Sabino Rolim Guimarães Filho
Cena 1 Senhora de 89 anos, esguia, altura mediana, cabelos brancos e lisos até o pescoço, vestindo robe azul claro, ar de extrema ansiedade, indaga ao seu filho, que sorve uma xícara de café:
-Meu filho, dá pra vir dormir comigo? Tô com medo de dormir sozinha!
Diante da resposta afirmativa, ela relaxa e, abraçados, saem em direção ao dormitório.
Cena 2 – Meu filho que dia é hoje?
-Domingo
-Eu fui à missa?
-Não mamãe?
-Você me leva?
-Claro que sim.
-Tá certo, vou me trocar
Cena 3 A mesma senhora senta-se ao chão e começa a brincar com uma criança de dois anos. Ignoram o mundo em volta, interagem com intimidade. Ela pega uma boneca no braço e as duas colocam a pequena peça de plástico para dormir.
Cena 4 – Mamãe, falando de novo com as plantas, né?
-Claro! Elas me respondem!
-Como? Planta não fala!
Chama o filho. Os dois se inclinam em direção às flores de jasmim-manga e ela retruca:
-Sinta o cheiro! É desse jeito que elas me respondem!
No palco da vida, as cenas são reais. Envolvem o autor e sua mãe, dona Joana ou dona Joaninha. Quem a conheceu, dificilmente, poderia relacionar o personagem desta crônica com a figura da minha mãe: Joana Cartaxo Guimarães.
Não era rude, mas austera. Forjada na moral judaico-cristã, oriunda de colégio católico, criada com a disciplina que sempre caracterizou sua mãe, Isabel Cartaxo, seguiu à risca esses princípios. Foi professora, formada na primeira turma da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Cajazeiras.
Teve participação relevante em atividades sociais e religiosas de nossa terra, tais como festas de debutantes e quermesses. A creche do bairro dos Remédios, que mudou a vida de tanta gente carente, foi uma das maiores lutas de dona Joaninha. Em trabalho conjunto com as ex-alunas do colégio das Doroteias, ela foi uma viga mestra daquela instituição.
Ainda beirando os 80 anos, pequenas mudanças de comportamento confirmaram o diagnóstico médico: mal de Alzheimer. A evolução da doença revelou a pessoa que ela sempre foi, mas, contida, nunca deixou aflorar. À medida que a memória da formação rígida se esvaia, brotava uma mãe, não apenas sempre cuidadosa, mas carinhosa, capaz de me abraçar e me beijar várias vezes ao dia, atitude incomum até então. Desabrochou outra mulher, tal qual as flores que ela tanto amou em vida.
Já aos 89 anos, problemas renais, agravados pela covid 19, a levaram ao hospital. Impossibilitada de fazer hemodiálise, com o quadro irreversível, a família decidiu colocá-la em cuidados paliativos. Restava dar-lhe o conforto na partida. Ela sempre estava chegando ao hospital, muito embora, lá estivesse há vários dias…O Alzheimer aliviou o sofrimento.
Último ato. Aquela senhora de cabelos brancos, algo torporosa, deitada num leito de hospital, acaba de tomar um sorvete, tendo a seu lado os três filhos, a única nora e a neta mais nova, todos de mãos dadas, rezando o Padre Nosso e o Santo Anjo. Três dias depois, em 28 de abril de 2021, surgia uma nova estrela no palco do firmamento.
Sabino Rolim Guimarães Filho, médico oftalmologista.
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