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Francisco Cartaxo

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O sonho de José

06/09/2020 às 15h38

Coluna de Francisco Cartaxo

Enquanto limpava a roça de milho e feijão, o pensamento voava longe, um dia eu vou morar na cidade e dou um jeito de botar uma bodega nem que seja na ponta da rua. Se Deus quiser, eu faço isso com força e vontade porque vontade e força eu tenho de sobra. Viver na rua, com luz elétrica, sentina decente, se a situação melhorar compro um rádio pra ouvir Luiz Gonzaga tocar e cantar e escutar as notícias do Repórter Esso, feito que nem ouvi na casa do major Galdino no dia em que eu fui levar de presente pro doutor Waldemar um saco de feijão verde e maxixe. José ruminava, eu fiquei ouvindo, não entendia bem, mas que voz saía de dentro do aparelho!

José cuidava da plantação de inverno tal como faziam seus antepassados, lá pelo século XIX. E a lavoura era sempre milho, feijão e fava, maxixe, melancia, jerimum, batata doce. E algodão. A única novidade que surgiu naquele tempo foi o cultivador, o jumento arrastando a rústica peça de madeira e aço e o homem guiando para revolver a terra. Tecnologia de tempos imemoriais trazida, como novidade, para aumentar a produtividade da força de trabalho. José não sabia nada disso. Nem era preciso. Só lhe interessava o resultado para encaixar no seu sonho. Mais algodão, mais dinheiro. Com a venda de umas cabeças de gado, José terá sua bodega.

É ver um maluco. José ria sozinho debaixo do juazeiro para fugir do calor abafado do sol de inverno, a água fria da cabaça, antegozando a realização do sonho que carregava dentro de si, em borbulhas de alegria. De olho na prima, Alcide, filha de José de Sousa Cartaxo, mais conhecido como Zeco da Prensa, José Alves Rolim se animou todo.

O sogro era arremediado.
Herdou dos pais um pedaço das terras do sítio Prensa. Nem sabia que a fazenda tinha sido recebida como dote pelo português Joaquim Antônio do Couto Cartaxo, que a repassara para seu filho mais velho, José Antônio do Couto Cartaxo, que ficara para a viúva Antônia Benedita de Albuquerque, avó de Zeco. Pois bem, Zeco da Prensa, que só andava de palitó e gravata, fez-se chefe político rural. Quis ser vereador duas vezes. Em 1951, obteve 107 votos, graças a sua grande família de 14 filhos! Não foi eleito, mas teve mais votos do que Horácio Alves, Bizé Bandeira, Leitão e Nelson Rolim.

José casou-se e foi morar na cidade.

Instalou sua venda na rua Joaquim de Sousa, esquina com a Victor Jurema, ao lado do Açougue Público, e tocou a vida como comerciante. Sonho realizado! A bodega de Zé de Hildebrando (assim era conhecido) foi uma das primeiras escolas de vida que eu tive. De calção, às vezes sem camisa, lá estava eu a escutar as conversas de fregueses e eventuais compradores. Guardo imagens que levarei para o túmulo, onde repousam os ossos de minha mãe, no velho cemitério de Cajazeiras.

Certa manhã, vi se aproximar da bodega um homem curvado sobre o próprio corpo, quase formando um ângulo reto, subiu na calçada e cheio de tremores encostou no balcão. Não deu uma palavra. Com esforço levantou a cabeça em jeito de petição e, em modo de caridade, José pegou a garrafa e derramou o líquido no copo. Mãos trêmulas levaram o copo aos lábios. Aquele senhor, um conhecido artesão que fabricava móveis, foi erguendo o corpo pouco a pouco lentamente, lentamente até ficar de pé. Ereto, murmurou um obrigado e saiu.

Já em casa, esbaforido, contei à minha mãe o que acabara de ver. Ela tirou os olhos do tricô, levantou a vista para o céu e balbuciou:

– Coitado!

Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

Contato: [email protected]

Francisco Cartaxo

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Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
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