O sino da igreja velha
O badalo do sino da secular igreja da praça da Casa Forte soou diferente naquela manhã. Fazia anos que se ouvia uma engenhoca eletrônica. Naquele dia, não. Caminhantes matinais notaram a mudança. Então vimos na janela da torre a cordinha para lá e para cá, movida por mão invisível. De repente, aflorou a imagem meio esquecida do sacristão. Não sei que recordações trouxe aos companheiros diários da caminhada na histórica praça recifense. Num relance aquele badalo me levou a Cajazeiras de minha infância. O sino da matriz servia para avisar a hora da missa. O sino da velha matriz, construída na elevação do terreno escolhido por Mãe Aninha para erguer a capelinha, onde seu filho padre exerceria suas funções sacerdotais.
O sino do meu tempo era uma convocação. Terceira chamada… segunda chamada… primeira chamada… Era essa a rotina em dia de missa. Em momentos inesperados, antecipando-se à nota de falecimento, lida na difusora, a notícia de morte chegava à população cajazeirense por meio do sino tocado por João David, o sacristão, que morava numa esquina da rua Victor Jurema, perto do açougue.
Anjo tinha um toque peculiar.
Hoje eu não saberia distinguir os repiques de finados. Mas sei que havia diferentes combinações de batidas do sino. Aprendi na tristeza da revelação. Impossível esquecer, por exemplo, o dia em que meu irmão Tantino anunciou, quando voltávamos de uma “caçada” de baladeira lá nas terras do antigo vapor:
– Evan morreu, escute o sino.
Já se esperava. Morte prematura, com seis dias de nascido. Nascera doente, mas não se enterrou pagão. Minha mãe fez questão de levá-lo ao batismo. Jamais o deixaria viajar pagão. Só assim, evitaria sua permanência no limbo. Isso nunca. Católica por convicção, dona Belinha acreditava, piamente, na ida de seu último filho direto para o céu. Nunca pós em dúvida. E nos falava com a certeza dos crentes.
O sino tinha outras serventias.
Foi toque de recolher e aviso de alerta, de defesa, de luta. E de chacota também. A história e a literatura estão cheias de repiques de sinos de igrejas. Romance famoso do norte-americano, Ernest Hemingway, traz no nome (Por quem os sinos dobram) narrativa de sonhos, da violência e das atrocidades da guerra civil espanhola, que o autor vivenciou, e a fez de modelo de sua obra ficcional, aliás, logo transplantada para o cinema. Manuel Bandeira escreveu um poema para realçar, entre rimas e aliterações, a variedade e o significado dos sons projetados pelos sinos: Sino de Belém, bate bem-bem-bem. Sino da Paixão, bate bão-bão-bão. Sino do Bomfim, que vai ser de mim?
Euclides da Cunha, ao narrar lances da guerra de Canudos – o Exército republicano contra jagunços de Antônio Conselheiro -, fala no conjunto assombroso de cinco mil casebres impactos numa ruga de terra. As duas igrejas destacam-se, nítidas. Faz esse registro, para depois, indicar o começo de violento embate, empreendido pela desastrada expedição do coronel Moreira César. O sino da igreja velha batia, embaixo, congregando os fiéis para a batalha. E no desenrolar da briga, entre jagunços e soldados, informava Euclides: estalando em cheio no arruído da refrega, ouviam-se mais altas as pancadas repetidas do sino da igreja velha.
Tudo isso me veio em turbilhão, ao escutar o sino, de verdade, da igreja da Casa Forte, o que desencadeou lembranças adormecidas na memória de criança. E de leituras que moldaram minha formação literária.
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário