O reencontro
Por Francisco Frassales Cartaxo
Deus do céu, quanto tempo! O susto foi enorme. Abraços e beijos acompanham evocações que se atropelam em nossas mentes, imagens antigas a revolver episódios, frases guardadas há décadas se insinuam, mas param na língua. Eu não poderia ganhar melhor presente neste final do ano.
– Querido mestre, quantos anos, hein?
Disse Fernanda, relembrando a maneira como me tratava, já agora acomodada na poltrona e passada a emoção inicial. Que distância, 40 anos do último encontro! Fora aluna exemplar na Universidade Católica do Salvador. Não era a mais bonita entre a dezenas de jovens na classe. A mais inteligente, sem dúvida. É verdade que havia outras assim, incluindo aquela que veria a ser a mãe dos meus três primeiros filhos. De tão amigas, as duas, pareciam irmãs, mesmo sendo muito diferentes no físico, no jeito de ser e no falar. Fernanda – alta, esbelta, elegante, porte de garça – pertencia à tradicional família baiana, de classe média alta a cultivar hábitos conservadores e rígidos cânones religiosos, educação fina, um tanto sofisticada.
Agora, às vésperas do novo ano, repassamos sucessos e insucessos, alegrias e angústias. Angústias coletivas e agruras individuais, ela em doses maiores do que as minhas.
Estudante de colégio cristão, Fernanda abraçou a causa dos pobres da perspectiva da Igreja Católica, engajada, de início, na Juventude Universitária Católica (JUC), braço progressista avançado. Não se demorou para alcançar o patamar mais amplo da Ação Popular (AP), numa época de radicalização ideológica e política, refletida na Igreja entre conservadores e partidários da Teologia da Libertação. A convivência com outras correntes de esquerda, a aplicação de métodos de análise da realidade e de atuação política organizada levaram o grupo a dar um passo ousado na direção do marxismo/leninismo e abraçar o PC do B.
Em plena clandestinidade, imposta pela ditadura, o Partido orientou seus militantes de classe média a assumir a condição de proletários para balancear sua composição social, diminuindo o peso pequeno burguês, dada a preponderância desse segmento no conjunto de seus quadros. Por isso, lá se foi Fernandinha para o chão de fábrica, com suas mãos delicadas, suas maneiras finas de moça educada em colégio de freira, aprender na marra a ser operária de verdade, morar na periferia de São Paulo, acordar de madrugada, enfrentar ônibus lotado. E fora da fábrica? Festas, cachaça, música brega, forró, cerveja, sexo. Cartaxo, o código de sexualidade foi um choque para mim, disse, e acrescentou, reprimindo um suspiro de angústia, qualquer dia desses eu lhe conto. Outro mundo, outro mundo.
Não deu. Antes de cair na real, Fernanda havia sido alertada por um operário, velho militante do partidão:
– Moça, você não é deste meio, a gente vê logo, toma cuidado, menina.
Cuidou-se. E retornou à “vida normal”, também por causa do marido preso, sob tortura dos agentes da repressão, carecendo mais do que nunca do seu apoio. Coisas assim, ouvi de minha antiga aluna, narradas com pormenores, entre suspiros, soluços e silêncios no apagar das luzes de 2015. Apesar das terríveis recordações do seu passado clandestino, amenizado pelo vinho e pelo queijo de cabra, o reencontro com a professora-doutora Fernanda foi como um presente. Um inusitado presente de fim de ano. Nem tempo tivemos para lastimar o branco dos cabelos, as rugas no rosto, marcas cruéis dos anos.
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