O olhar da filha do juiz
Por Francisco Frassales Cartaxo
Era uma vez… Depois de longo tempo ela voltou exuberante e madura. Poucos lembravam da menina-moça, mais moça que menina de tranças, metida numa farda colegial, o olhar penetrante, a carregar no coração a alma da cidade, onde o pai fora juiz de direito sério, competente, justo. A cidade crescera, adquiriu feição moderna, shoppings, bares, restaurantes, motéis, emissoras de rádio, sinais de trânsito, ônibus urbanos, faculdades, clínicas, escritórios de advocacia. Muitas novidades.
A grande novidade, porém, era ela própria.
Voltavacomoexperiente promotorapública, depois de exercer o cargo em várias comarcas. Entre as pessoas que a guardavam na memória, aguçou-se enorme curiosidade,afinal, como se conduziria a filha do juiz? Magistrado que deixara na região a fama de homeminteligente, íntegro e honesto. A curiosidade fervia mais ainda porque, com poucos meses de atuação na comarca, ela iria comandar a acusação,no júri popular,de um réu de crime hediondo. Um bárbaro que matara a própria esposa, por reagircom brutalviolênciauma paixão eventual compartilhada.Nem sequer dissimulou a causa do crime.A vagina, a bunda, os peitos estraçalhados,a faca ensanguentada exposta na mídia. Ele não era um réu qualquer.Seu status socialfez explodir nas redes virtuaisa intimidade trágica do casal, como a oferecer um antídoto à histórica impunidade do machismo, ainda com adesão forte no grande sertão.
Pois bem, esse caso horripilante seriao primeirotestepúblicoda filha do juiz, uma bela figura de mulher, revestida agora da imponência do cargo.Olharesmúltiplos se dirigiam a ela, semos exagerados apelos sensuais de outros tempos à procura de um sinal qualquer da menina-moça, na exuberância da maturidade, a atrair irresistíveis paixões. Ah, como sofreu o desventurado professor!No último instantede vida,o coitado reveloupor inteiro sua paixão ao murmurar baixinhoseu nome, enquanto esmagavao retrato da menina entre os dedos até que as mãos restassem mortas, brancas e rígidas.
Mas isso foi no passado.
Agora,promotora público, já não desfila de tranças em festas cívicas. A nova condição de autoridade lhe exigeoutra postura. Sema boçalidade dos medíocres, é claro. O vidrodo carro aberto para cumprimentar velhos conhecidos, o riso fácil, o abraço efusivo…adenunciar a menina-moça de antigamente, simpática e desejada.
O olhar, ah, o olhar,misterioso olhar!
Estaria faltando o contraponto?O dia chegou. O dia do júri mais aguardado da região. No solene ritual da Justiça, o tribunal popular iria proferir uma decisão histórica, no linguajar dos cronistas das emissoras de rádio. Conhecido radialista bradou:Será que vivemos ainda na era do cangaço e dos coronéis,a justiça praticada com as próprias mãos? Os juradosse votarãoagarrados ao passado ou olharão o presente e o futuro? Oassassino será punido com o rigor de quemabusa da violência contra a mulher?
O júri decidirá.
No auditório via-se um senhor de cabelos brancos, bengala, lápis e caderno. Discreto, fazia anotações.De repente, um grito “muito bem” ecoouna sala no exato instante em quea promotora, comvoz firme, dirige-se ao conselho de jurados eencerra sua fala pedindo rigorosapunição para ouxoricida. O “muito bem” atraiu o olhardafilha do juiz,que, pela primeira vez,exibesinais de nervosismo aoencontrar a meio caminho o olhar de aprovação daquele senhor de cabelos brancos. Então, um brilho intenso iluminou, no cabo da bengala, a imagem de uma deusa.
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