O “não” da vida
Por Mariana Moreira
Os corpos anatomicamente desenhados e artificialmente esculpidos e transformados em usinas produtores de recordes, medalhas e poderio político. Corpos que não permitem falhas, que não aceitam imperfeições, que não revelam gênero, cor, idade. Corpos anônimos na visibilidade de bandeiras e hinos que tremulam pódios e empoderam ranking.
E são apenas corpos talhados como máquinas cujas engrenagens carecem de estar sempre articuladas e encadeadas na direção da melhor marca, na quebra do recorde, na supremacia das medalhas que traduz poder político e hegemonia de domínio. Corpos despidos de quaisquer vestígios de humanidade que permite a queda no pulo, o escorrego no salto, a fraqueza de músculos que trava movimentos de pernas e atrofia corridas e braçadas.
E quando a máquina se humaniza e, na rebeldia do fazer-se e do ser gente, diz não, nos espantamos e, boquiabertos, enxergamos o ser de alegrias, dores, tristezas, júbilos, desejos, sonhos que respira e pulsa além dos colados maiôs, dos definidos músculos que enrijecem peitos e coxas. E o não vislumbra pessoas que, muitas vezes, desejam somente o abraço humano, o olhar de afeto sem o ofuscar do ouro, da prata e do bronze.
A atleta norte americana Simone Biles que, nas Olímpiadas de Tóquio, contrariando as expectativas que pesavam sobre seus ombros, de ser recordistas em todas as competições que estava classificada, diz não e sai de cena, estarrecendo o mundo, nos alenta a esperança de que, entre máquinas humanas transpira e sussurra gritos de gentes.
O não de Simone Biles alerta para a existência do humano que se dissipa nos corpos dos atletas, de quem é cobrada perfeição, superioridade, vitórias. Dizer não a possibilidade concreta de uma medalha de ouro e do glamour do lugar mais alto do pódio pode ser apenas o sim da vida. O grito de alerta para o humano além do atleta. O sinal vermelho de urgente advertência para o cuidar dos corpos e mentes como complementares da composição do ser. A iminência de que atletas são criaturas robotizadas que repetem e reproduzem movimentos, gestos, além das medidas de um tempo normal, traz no não de Simone Biles a concretude do sim.
E dizer não também é um revolucionário e subversivo modo de dizer sim a vida com medalhas, recordes, movimentos perfeitos, sincronias harmoniosas, bailados sincronizados de atletas que, indiscutivelmente, são pessoas de risos, sonhos, choros, medos, prazeres.
E o não de Simone Biles ganha o reforço do Carlitos nas cenas finais de O Grande Ditador, a nos lembrar sempre que “Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido”.
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