O legado de Cristiano Cartaxo
Cristiano Cartaxo Rolim faleceu há 45 anos, no dia 29 de agosto, após completar 88 anos. Nasceu e morreu no mês agosto. Alegria e tristeza. Pouco antes de fechar os olhos em definitivo, estava lúcido. Por precaução, andava com muito cuidado, pois sabia que queda na velhice é atalho para a caminhada final. A audição e a memória davam sinais de cansaço. Por isso, fez de uma parede no terraço da casa, onde viveu quase metade de sua vida, uma lousa, um quadro negro. Ali ele escrevia nomes de pessoas e coisas, frases, versos, sonetos inteiros, a fim de não os esquecer. Vi meu pai muitas vezes mastigando palavras, lidas no quadro, enquanto caminhava pra lá e pra cá no alpendre. Era como se quisesse reter o que lhe agradava, para ruminar nos derradeiros anos de sua longa existência.
Meu pai amava o sertão.
Orgulhava-se de ser sertanejo. Optou por se distanciar dos meios adiantados, como se dizia então, para viver em sua terra. Deu aulas de química, física e francês. Participou de muitas iniciativas culturais no campo das artes e das letras. Até criou um Centro de Artes e Letras nos anos quarenta. Em um tempo de extrema precariedade dos meios de comunicação e transporte, os presentes que mais lhe agradavam eram livros e revistas, trazidos por amigos e parentes. Gente que residia em cidades grandes ou mesmo em Cajazeiras, quando viajavam para o Rio, Recife, Fortaleza ou João Pessoa.
Menino, cheio de curiosidade, presenciei o poeta carregado de emoção a manusear volumes ainda com cheiro de novo. E depois da saída da visita, vinha o prazer de concentrar os olhos nas letras e percorrer outros mundos, estando em Cajazeiras. Sem dúvida, um modo eficaz de fugir da solidão. Solidão nunca foi apanágio da velhice, bem sei que a leitura tem essa sublime qualidade em qualquer fase da vida. Agora mesmo, neste isolamento infernal, imposto pela desgraça do novo coronavírus, muita gente escapa do pior, graças ao mergulho no encanto dos livros.
Lamento uma coisa em meu pai.
Era desorganizado. Muito. Se Cristiano Cartaxo não tinha apego a bens materiais, também nunca se empenhou em preservar sua produção intelectual. Muito se extraviou. No ano em que concluiu o curso de farmácia, no Rio de Janeiro em 1913, por exemplo, ele traçou em versos o perfil de cada colega de turma. E eram muitos e de todas as regiões do Brasil os concluintes daquele ano. Vi uma foto do quadro de formatura que o tempo destruiu. Salvaram-se um ou outro daqueles sonetos que, talvez, tenham sido publicados em alguma revista ou jornal da época. Meu pai não guardava nada. Suas filhas, em particular, Maria Ilina e Margot, além da nora, Elita Braga, foram as que mais cuidaram disso.
Seus poemas foram enfeixados em livros graças um genro, Mozart Soriano Aderaldo, membro da Academia Cearense de Letras e do Instituto Histórico do Ceará, que insistiu em selecionar os Quarenta sonetos. Mais tarde, depois de sua morte, ampliou-se para A musa quase toda. Ainda escaparam textos de discursos, conferências, crônicas e artigos de jornais e revistas de Cajazeiras e outras cidades, mercê dos cuidados de nossa irmã mais velha, Maria Ilina, que sempre morou com os pais e encontrou essa forma de demonstrar seu amor filial. Herdei um pouco desse pequeno acervo. Foi seu legado. Sem esquecer o ilimitado amor a Cajazeiras. A herança maior, no entanto, é sua reconhecida retidão de caráter. Isto me orgulha. E me guia a vida toda.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário