O jumento sedutor vem aí todo enfeitado
Ariano Suassuna viajou no dia 23 de julho. Não voou por medo de avião. Resistia a subir num bicho daqueles e olhar do alto o buraco imenso lá em embaixo. Preferia a buraqueira das estradas. Por isso foi a cavalo. Ele pós os arreios no animal, amarrou bem a cela, vestiu o gibão, pendurou um bornal de couro cru, não sem antes conferir mais uma vez o conteúdo, pulou na sela, enfiou o chapéu de aba quebrada na frente. E, já escanchado, o pé no estribo, solta o grita:
– Ei, magote de desocupado, vou-me embora.
E se foi. O grito ecoou tão alto, tão alto que foi bater na Pedra do Reino, ressuscitou o pai, João Suassuna na Fazenda Acauã, despertou João Grilo em Taperoá, fez Chicó se benzer diante do bispo e do padre. O grito acordou a mulher do padeiro e o próprio. Junto do Rei Degolado, Quaderna, o Decifrador, fala da Onça Caetana, de muitos viventes da lavra literária de Ariano, espalhados embaixo ou em cima da terra, no sertão de Guimarães Rosa, verde e cheio de rios, nos outros sertões. Fala do Brasil oficial e do Brasil real. Quaderna fala também do Brasil ignorante, onde predominam asneiras e burrice, a moça da televisão, extasiada diante do alvoroço causado pelo grito, a descobrir que existe um tal de Adriano Suassuna…
Ufa, a voz rouca de Ariano ribombou mundo afora.
Mas que diabo Ariano meteu naquele bornal de couro cru?
O jumento sedutor.
Isso mesmo. Não se espante. Ariano guarda surpresas desde sempre. A última ele deixou na Editora José Olympio, no Rio, no formato do livro: O jumento sedutor. Vem aí uma obra-prima, na avaliação, (suspeita, é bem verdade), do escritor Raimundo Carrero, autoproclamado filho intelectual de Ariano. Daí a suspeição. O jumento sedutor é o derradeiro escrito de Ariano, mexido e remexido ao longo de muitos anos, seguindo a lição das lavadeiras de antigamente, ensaboa a roupa, bate na pedra, molha outra vez, espreme, bota no quarador, lava de novo, bate na pedra, enxágua etc. etc., como ensinou Graciliano Ramos. Tanto é assim que duas vezes Ariano pediu de volta da Editora o calhamaço. E duas vezes, burilou o texto, cortou e aduziu palavras e desenhos. Isso mesmo, o livro está recheado de gravuras feitas pelo próprio Ariano. No capricho.
Afinal, o livro trata de quê?
Uma Revelação, diz Carrero, depois de ler os originais. “Não é uma novela, não é também um romance, por aquilo que supera em muitos pontos o que se diz numa obra de ficção, com os seus seres transtornados, felizes e as almas sacrificadas. É mesmo uma Revelação ao trazer o espírito vivo, mágico, grandioso do verdadeiro Brasil”. Construído numa mistura de técnicas narrativas, de símbolos, metáforas, com gente e jeito de circo e do romanceiro popular, tudo carregado de vida, amor e morte.
O imortal viajou coma Onça Caetana na garupa, ela disfarçada de uma fêmea, entre delírios e prodígios a lhe exibir agressivamente os peitos. E ele, fascinado, beija-os, e, ao mesmo tempo em que os morde, é picado pela cobra-coral, enrolada feito um colar úmido no pescoço da Moça Caetana. Então, ele é fulminado nos estremeços obsenos da morte. Assim se foi entre o gozo e a morte, a estremecer todo, cerrando os dentes, abrindo e fechando a boca no espasmo do Gavião.
Foi de vez, mas ficará para sempre eternizados em seus personagens. Como sonhou.
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