O canto da mesa
Por Mariana Moreira – A marca no canto da mesa da sala de jantar se confunde com as mais tenras lembranças de infância.
A cena, de tão frequente, nunca me despertou a curiosidade de inquirir sobre sua origem.
Meu pai esterilizando a seringa de vidro para o exercício de aplicar injeção. O pequeno fogareiro de alumínio abastecido com álcool, cujas tremulantes chamas azuladas encantavam olhos e sonhos infantis, colocava em ebulição a água que ia esterilizar o engenho. Engenho que, objeto da permanente curiosidade infantil, era sempre guardado na parte mais alta do guarda louça da sala.
As aplicações de injeção seguiam uma sequência rara, determinada pelas condições da época, onde o acesso aos serviços de saúde era escasso e, em muitos momentos, inexistente.
Muitas vezes, as injeções eram prescritas por Joca Moreira, Quinco do Olho D’Água ou algum outro “prático” que, iluminados pela sabedoria e pela curiosidade, empreendiam, por conta própria, a jornada do conhecimento sobre as doenças e as indicações medicamentosas da cura.
E era assim: dependendo da gravidade da enfermidade, as pessoas solicitavam a presença de meu pai em suas casas, ou vinham a nossa, sempre no começo da manhã, aproveitando a fresca do dia.
E via meu pai se agigantando ante os olhos da menina, quando, cumprido o ritual de purificação da seringa, roçava o gargalo da ampola com uma faca de cozinha, e, de maneira delicada, sugava o líquido e, de forma sutil, expirava as gotinhas de ar e aplicava a injeção no braço. E, para deleite de uma infantil, mas buliçosa assistência, as caretas e gemidos do paciente serviam de material para tantas outras gargalhadas futuras.
E o canto da mesa, com a madeira levemente carcomida pelas labaredas que, frequentemente escapavam do fogareiro, traz também a tradução do cuidado que, na lógica da sociedade mercadoria e consumo, se esmigalhou.
Como um pequeno agricultor, com seis meses descontínuos de escola, aprende a arte de aplicar injeções e o faz apenas como parte da essência humana de ser gente e, assim, se fazer humano com o outro?
E o fazia sem nenhuma aferição de mercado, ou cobrança de valores. Apenas, o “muito obrigado. O Deus lhe pague”. Em outros momentos, com a saúde restabelecida, o mimo de uma gorda galinha para o almoço de domingo.
E o cuidar de si e do outro era a forma mais verdadeira da expressão de humanidade que, em momentos necessários a todos fazia pedaços de um só, que se traduzia comunidade.
Vendo o canto da mesa com as marcas das queimaduras que deram e dão vida a madeira morta, também ainda sonho em me apropriar daquele engenho e incrementar os brinquedos e folguedos da menina que ainda vive em mim.
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
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