O calor do sertão ganhou o mundo
A parada para o almoço foi num restaurante à beira do rio, muita sombra, mangueiras, cajueiros, goiabeiras, pés coco e carnaúba. Mais parecia um sítio em baixio sertanejo. Contraste perfeito com a secura da estrada, quilômetros e mais quilômetros de asfalto fumegante, no esturricado verão nordestino. Ela nem ligou para a brisa que acariciava seu rosto de deusa. Só enxergava a bica encostada à latada coberta de palha de coqueiro. Vou tomar um banho de bica, disse, a alegria exibida no olhar, já se dirigindo ao carro e, logo depois, ao reservado, de onde saiu pronta, com a toalha enrolada no corpo. Também resolvi ir, induzido pelo gesto mudo de minha jovem companheira de viagem. Senti o frescor da água fria, que beleza… mas não demorei a voltar à mesa.
Ela se deixou ficar.
Sob olhares de cobiça, e de inveja, a água escorria pelo seu corpo, nem branco nem preto, os cabelos longos e lisos espalhados nos ombros e nos peitos, na rigidez dos 30 anos. Cabelos de índia, pele de índia, nariz de índia, olhos de índia. Iracema? Não. Iracema é invenção de José de Alencar. Ela era real, me segredara sua ascendência indígena, na penumbra enluarada da varanda de meu apartamento, em confidências que a insônia da paixão arrepia e se infiltram no corpo e na alma.
Que coincidência!
Viajei. Ali, de volta à mesa do restaurante, viajei. Fui à infância, recordando cenas narradas por minha mãe. Sua bisavó, nua, no banho do rio, antes de ser preada. Teria sido no rio Mearim? Ou no Parnaíba? A memória não guardou. Talvez tenha sido no rio Poti, lá mais embaixo, além da bica do Ipu, já perto dos Inhamuns, na divisa do Ceará com o Piauí, onde a serra da Ibiapaba perde força. Nunca em Tianguá, por onde andou pregando o evangelho e politicando nosso padre José Tomaz de Albuquerque. Não, não foi lá em cima. Foi mais ao sul que a indiazinha se banhou no rio Poti, nua, e despertou os instintos do caçador, que logo a fez mãe. Mais tarde, avó, bisavó e minha tataravó.
Ela, com seus cabelos lisos e longos derramados pelos ombros a cobrir-lhe os peitos, abrigados no artifício do biquine, chegou-se perto com um riso maroto, pediu-me um beijo nos lábios úmidos, em jeito de troféu. Um paraíso, um paraíso, exultou, isto aqui é o paraíso! Depois de horas sob o sol quente do bê-erre-o-bró sertanejo, o asfalto a soltar ondas de calor, estar ali, à beira do rio, com o corpo refrescado é o antegozo do éden.
Aonde estaria ela, hoje?
Sumida. Há muitos anos, largou tudo e foi embora para São Paulo. Não que a frenética agitação paulistana lhe atraísse. Nunca teve gana de ganhar dinheiro. Seus valores, de berço e de experiência, sempre apontaram noutra direção. Quem sabe, o Rio de Janeiro teria sido o lugar apropriado para embalar seus sonhos de amor e paixão.
Paixão pela vida! Firme. Intensa. Viver cada momento com a exuberância dos sentidos, permitida pelos limites físicos e os da alma.
A última notícia dela, eu a tive por intermédio de um amigo, com quem, em épocas diferentes, claro, compartilhei o privilégio do abrigo amoroso, no calor da paixão daquela menina de corpo, nem alvo nem preto, de cabelos longos e lisos, esparramados no corpo maduro dos 30 anos. Soube que ela andou pelo mundo, me disse o amigo, França, Europa, Bahia… carregando o calor do sertão aonde andava, talvez, a viver travessuras da menina má, assim e assado, sem os chocantes excessos patológicos da personagem de Mario Vargas Llosa.
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