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Mariana Moreira

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Nasceu o menino. Onde?

24/12/2020 às 14h20

Coluna de Mariana Moreira

Por Mariana Moreira

O menino vai nascer. Seus pais, exauridos na fila do auxílio emergencial, procuram um lugar para descanso. Peregrinam por ruas, praças, marquises, calçadas. Todas ocupadas. Corpos dilacerados de sofrimento, amortecidos pelo crack e pelo álcool, se tornam indiferentes ao menino que vai chegar. Perdidos em seus delírios e devaneios despem-se da condição de humanidade que lhe foi usurpada por ganância e usura de uns. Nada veem além da neblina de fumaça que exala de cachimbos e sonhos desconexos.

O menino vai nascer. Seus pais batem em portas de casas de famílias que, inspiradas e motivadas por sentimentos humanos, preparam a ceia e embalam os presentes que serão ofertados como homenagem àquele que nasceu para redimir a todos da opressão e da indiferença. Em todas as casas rostos taciturnos expressam a mesma resposta: não temos tempo para vocês. E as dores do parto se associam as dores da alma. Luzes piscam e ofuscam lágrimas, borradas em rostos fincados de tristeza e solidão. Pés cansados caminham.

O menino vai nascer. Seus pais procuram abrigo e pouso em hospitais com leitos esgotados de moribundos que agonizam seus derradeiros suspiros enquanto a tela azulada de uma televisão suspensa no corredor ruge desdém e sarcasmo de alguém que apenas diz: “e daí?”. Corpos repousam em macas e cimentos frios intercalados de gritos de dor e angústia ante a vida que se converte em nada.

O menino vai nascer. Seus pais procuram abrigo em uma pequena floresta que verdeja nas cercanias do vilarejo. Mas nada encontram. Apenas cangaços de bichos, pássaros e árvores estorricados pelas labaredas que tangeram a vida para as cinzas convertidas em bois e soja auferidos por cotações e cifras de milionários mercados.

O menino vai nascer. Seus pais procuram abrigo num pequeno riacho que entrecorta muros e aterros de fábricas e indústrias. Mas o pequeno riacho não mais existe. Suas águas desapareceram no lodaçal de esgotos fétidos com lamas de mineradoras, rejeitos contaminados de fábricas, produtos ofensivos de descarte da produção de artigos de luxo.

O menino vai nascer. Seus pais não mais encontram abrigo na exaustão da indiferença. Cansados perdem o olhar no horizonte que se turva ao longe entre antenas, arranha-céus, poluição. Os olhos já embaçados de desesperança se movem para uma tênue luz que pisca ao longe, na encosta íngreme da favela. E o derradeiro fiapo de esperança se acende e anima seus passos. No tosco barraco a porta é escancarada para os estrangeiros. Um gole de café quentinho e uma tapioca alivia a fome. A mulher é abrigada na tosca cama de papelão enquanto vizinhas parteiras conduzem a milenar arte de reproduzir a vida.

E o menino nasce. Seus pais se alegram com os cânticos de hip hop que festejam e agradecem. Crianças, em inocentes algazarras, saltitam entre vielas e íngremes ladeiras. O pai é abraçado pelos moradores que se chegam para, entre um trago e outro de aguardente, saudar a vida nova que começa. A mãe é acolhida por tantas outras mulheres que se reflete em seu rosto. Na laje uma improvisada festa ganha a dimensão da alegria.

E nasceu o menino, como outrora, entre humildes e verdadeiros.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

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