Nas franjas da serra
Por Mariana Moreira – Pelo pára-brisa do carro, no horizonte, se descortina o platô da Chapada do Araripe desenhando um traço reto e esticado sobre o poente. Lançando sombras sobre o Cariri, o desenho geográfico me evoca o cheiro de pequi e me transporta para a infância quando, nos meses de safra da fruta, sobretudo, nos finais de inverno, os caroços amarelos e aromáticos temperavam panelas de feijão verde de caldos engrossados com nata. Os caroços eram avidamente disputados pelos irmãos na cata da amêndoa que se escondia entre camadas de espinhos e advertências maternas.
A serra ao longe me traz os tempos em que filhos e netos de tantos romeiros que buscavam abrigo e esperança na presença e na pregação do Padim Ciço se deslocavam para ribeira do Cipó para o trabalho temporário da apanha do algodão e da moagem de inúmeros engenhos de rapadura que se espalhavam por várias franjas de riachos aproveitando as várzeas úmidas onde os pendões da cana de açúcar tremulavam ao vento enquanto seu sumo, muitas vezes salobro, desabrochava para a abundância do alimento que saciava a fome em tantas estiagens. Rapaduras e farinha que fartavam tantos bornais de vaqueiros, lavradores, retirantes. Muitos desses romeiros convertidos em trabalhadores sazonais terminaram se fixando entre nós por lanços de afinidade ou de casamento, deixando descendência entre amigos de infância, colegas de escola, afilhados, cartas saudosas de São Paulo.
Na linearidade da Serra que divide o horizonte vislumbrei tantos romeiros e penitentes que entrecruzavam nossos folguedos de infância e caminhos da escola arrastando pesadas cruzes e mucutas de parcas posses, no passo lento de quem espera apanhar a felicidade e a terra da promissão na próxima curva das tortuosas trilhas da poeirenta estrada. Nas costas o peso de fardos de opressão natural e política de quem desgraçadamente nascia pobre numa região onde a miséria era inventada por poucos espertos.
Na mesma dimensão geográfica que risca o horizonte vi as narrativas paternas de viagens empreendidas com o pai e os irmãos Possidônio e Zé Venga para o Cariri, levando animais para escapar de estiagens mais duras e buscando víveres, como farinha de mandioca. Da longa jornada, dos pernoites em alpendres abandonados e juazeiros de pátios, quando a carne seca, o feijão de corda e a rapadura compunham as refeições. Da espora de prata esquecida por Tio Possidônio em um gancho de juazeiro qualquer e que teimava em retornar para o resgate, mesmo com várias horas de transcurso. Do mestre Manoel Santana, recrutado pelo meu avô paterno Felinto Moura nas pousadas do Juazeiro do Norte e que veio com a missão de ensinar os filhos as letras e as contas. Cumpria-se o desejo e a promessa de minha avó Mariana, que dedica vários anos a assinatura e a leitura do Mensageiro do Coração de Jesus, como pagamento pelas bênçãos do professor que livrou os filhos da escuridão do analfabetismo.
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Das dobras e rugosidades da Chapada do Araripe soaram notas e melodias de romeiros que cruzavam as ribeiras de Impueiras e Cipó evocando a intercessão da Santa Beata Mocinha. E, numa curva da estrada se descortina o Horto e a branca estátua do Padre Cícero, perdido entre beatos, romeiros e flashs das modernas engenhocas fotográficas.
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
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