Não vamos recuar
Um cartaz exibia: não vamos recuar. De repente, grudam fiapos em minha memória. De muito longe e de hoje. Da infância a domingo passado, vendo o povo avançar nas ruas. Encostam-se uns nos outros, alheios ao tempo, ao espaço, à doença. Os fiapos e o povo. Saudade do professor Joel! Após concluir o ginásio em Cajazeiras, fui cursar o científico no Colégio Castelo Branco, em Fortaleza, onde, aliás, 20 anos antes, estudara Hildebrando Assis, patrono da ACAL. Ali não havia o curso clássico, preferido pelos que iriam fazer cursos na área de ciências humanas, como, no meu caso, o de direito.
Joel Linhares ensinava português.
Mas eu morria de inveja dos alunos do Colégio São João, no qual o professor Soares, dava aula. E publicara uma gramática, nada ortodoxo para a época, que eu muito consultava. Joel Linhares era impecável no vestir. Terno de linho diagonal branco bem passado, lencinho no bolso, gravata. O perfume entrava na sala antes dele. Deixara o Seminário católico no meio do curso de teologia, cheio do conhecimento de línguas. Algumas exóticas. Sânscrito, tupi-guarani, dizia-se, e até uma tal de esperanto, artificial e inútil.
O escritor Dimas Macedo, em Lavrenses ilustres, informa que Joel de Lima Linhares (1895-1979), nasceu em Lavras da Mangabeira, bacharelou-se em direito, foi poeta, filólogo, conferencista, gramático e romancista. Na Academia Cearense de Letras ocupou a cadeira nº 16, cujo patrono é Franklin Távora.
Certa vez, Joel Linhares deu 30 minutos para cada aluno traçar o perfil de um colega de classe, de escolha livre. Fizemos a redação. Na aula seguinte, ele trouxe o resultado como a nota mensal. Antes de devolver nossos manuscritos, teceu comentários a respeito de alguns textos. Uns poucos, ele mesmo leu, sem anunciar a autoria. O meu entre eles. Gelei de medo. Nem precisou indagar quem era o colega perfilado. Todos identificaram, de imediato, a figura alta, magra, taciturna que mal cumprimentava os colegas, e desfilava pelos corredores feito uma sombra. Ao revelar o autor do perfil, foi só elogios. Suspirei. Não me vi com essa bola toda. De verdade. Bicho do mato, ainda não acostumado aos estranhos colegas da capital, ficava observando. Tiro e queda. Escolhi aquele colega que eu supunha mais beiradeiro do que eu. Mesmo assim, dei asas a ingênuos devaneios de escritor…
Outras aulas me marcaram.
Joel Linhares repisava esta máxima: escrever bem não é escrever certo. Um dia, exemplificou. Deu-se a narrar um arremedo de crônica, que ele ia desfiando na hora, eloquente, peripatético. Ao final, parou e aduziu, se estivesse escrevendo, colocaria as vírgulas, os pontos, os acentos e as interjeições, tudo muito certo tudo correto. Depois, ele apontou os lugares comuns, inseridos no texto de propósito. Cadê a emoção? Perguntava e ele mesmo respondia, a emoção está na maneira de escrever, em como seduzir o leitor. Hoje, você, talvez até boceje ouvindo tais conceitos. Mas para o menino, quase rapaz, da Ribeira do Rio do Peixe, foi uma fantástica revelação!
Joel Linhares não costumava fazer praça de seus conhecimentos, que afloravam com naturalidade na formação das palavras, na maneira simples de ensinar. Uma cena faz parte do meu baú espiritual. Professor Joel citou o verbo recuar. O que é recuar? De chofre, feito um ator no palco, deu alguns passos de costas:
– Recuar é andar com o cu para trás.
Domingo, revi aquela cena no cartaz exibido pelo povo nas ruas.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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