Na rede com a senhora Bloom
Por Francisco Cartaxo
Já estava cansado de tentar. Nada me agradava nem me satisfaz nesta época de pandemia, com exibição de privações, fome, incúria, burrice, intolerância e angústia. Tempo de tristes imagens de doentes em macas na fila da morte de hospitais. E de canteiros de cruzes! Tentei companhias que outrora me seduziam, mas agora me enfadam. A varanda do apartamento já não me enseja paz, enquanto corro o olhar pela vastidão do cenário ao meu redor. Cadê os pássaros? Nada disso tem serventia. Então, busquei em livros algo forte, capaz de absorver todos os meus sentidos e despertar em mim desejos inusitados.
Daí surgiu madame Bloom.
É certo que ela não apareceu de supetão. Aproximou-se como uma rolinha carente de aconchego. De mansinho. Em insinuantes rodopios gorgolejantes. Abandonei o fastio de poemas e contos e crônicas e trechos de romances e ensaios históricos. Cachaça de sempre. Larguei tudo. Até velhos amores, leituras recorrentes, esmaeceram. Rulfo, Rosa, Drummond, Lygia. Me rendi. Fui direto à última parte de Ulisses, de James Joyce. Me deitei na rede, puxei para bem junto de mim a senhora Bloom, acomodando-a a meu lado tal qual ela estava, imagino, no século passado, quando a conheci, de calcinha. Só de calcinha, deitada na cama, como naquele 16 de junho de 1904, na solidão de seu quarto, em plena exuberância de seus 30 e poucos anos! Assim – enquanto o marido, Leopold Bloom, realizava intermitentes andanças pela sua provinciana Dublin, recheadas de episódios tirados da história, da literatura, da mitologia – ela, Molly Bloom, se voltava para dentro de sua verdade interior. Pura. Pecaminosa.
Quase enroscada em mim, Molly Bloom deixou escorrer o fluxo de sua consciência, em monólogo interior, como a pensar alto para que eu pudesse “vê-la” nua e crua. E captar as reações de seu corpo diante de cenas afloradas aqui e acolá. Também sentir na minha pele o efeito da imersão profunda em sua intimidade, o corpo a encrespar, tamanha era sua concentração ao confidenciar inusitados segredos d’alma. Verdadeiros ou inventados? As duas coisas, encaixadas com perfeição no monólogo interior… segredos que causavam suaves gemidos de intenso gozo.
Isso eriçava meus sentidos. E, graças a Deus, me alheava do mundo atual, marcado pela pandemia da covid-19, trágico, estúpido, angustiante. Cheio de perdas, numeradas à distância, e das agruras pelas mortes próximas: de vizinhos, amigos e parentes. Obrigado, Molly Bloom, por deitar-se em minha rede.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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