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Francisco Cartaxo

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Morte natural

21/05/2018 às 08h47

“A Vida Como Ela É… de Nelson Rodrigues

A morte, mesmo sendo natural e esperada é indesejada. Mas esse tipo de viagem final representa um contraponto às mortes violentas. Mortes trágicas exibidas na mídia, todos os dias. Quando provocadas por desastres naturais ou atentados terroristas, por exemplo, as notícias causam impactos fortes, independente do lugar onde se dá a tragédia, os corpos inertes expostos pela crueza das imagens reais. Corpos que viram números: morreram milhares no tsunami; faleceram tantas pessoas no atentado ao metrô. São mortes-número. E os assassinatos individuais hediondos? Santo Deus, que horror!

Há também a morte-estatística.

Repórter policial de emissora de rádio do Recife, com modulação de voz peculiar anuncia, diariamente, o número de homicídios verificados em Pernambuco: hoje mataram tantas pessoas na capital e tantas no interior. Logo em seguida, o radialista informa quantos assassinatos ocorreram no mês e fornece o acumulado do ano. Atualiza todo santo dia a estatística de mortes por agressões à bala, arma branca, pauladas ou outro modo de ceifar vidas humanas. A divulgação, feita nestes termos, induz o ouvinte a se preocupar mais com os números do que com o drama individual e familiar vivido pelos personagens daquelas pequenas tragédias diárias.

O saudoso cronista Nelson Rodrigues transformou, anos a fio, esses casos em narrativas curtas, impregnadas de calor humano, inseridas na sua coluna A vida como ele é, em jornal carioca. Nelson Rodrigues estendia o manto da vida mesmo quando tratava da morte. Não lhe interessava a estatística. Ele traduzia com imaginação e sensibilidade as reações das pessoas diante de desgraças sofridas por desventuradas famílias do Rio de Janeiros.

Por que faço essa reflexão?

Porque faleceu aqui no Recife, segunda feira, dia 14, Severino Galvão, um leitor quase fanático de Nelson Rodrigues. Se vivo fosse o singular cronista, Severino não mereceria, penso, uma linha sequer do saudoso pernambucano. Por quê? Ora, sua morte natural não deixou lances dramáticos capazes de tocar os corações de leitores anônimos.

Severino nasceu no município potiguar de Goianinha. Adolescente ainda, em plena Segunda Guerra Mundial, foi embora para o Rio, onde já estava parte de sua família. Enfrentou adversidades na cidade grande, trabalhou no comércio e especializou-se em questões financeiras. Foi casado 66 anos com a carioca Célia Mendonça, e tiveram dois filhos. No Rio, Severino envolveu-se de leve na política, encantado com a pregação nacionalista de Leonel Brizola, e enchendo-se de ojeriza a Carlos Lacerda, expoente da direita tonitruante no agitado Brasil de antes do golpe de 1964. Nas dobras do mundo, quem diria, Severino foi parar no grupo financeiro Novo Rio, do qual Carlos Lacerda era um dos donos! Mas isso nunca lhe trouxe complicações. Continuou a enaltecer o destemido gaúcho, seu ídolo a vida inteira.

Quando prestava serviços ao grupo Novo Rio, Severino veio esbarrar no Recife, imaginando passar apenas uma temporada de dois anos. Mas que nada, aqui permaneceu mais da metade de seus 87 anos, até o dia 14 deste mês, quando seu corpo foi cremado. Um desejo dele, atendido pela viúva, Célia Mendonça Galvão, e pelos filhos, Célia Maria e Sérgio.
Severino tornou-se meu sogro, pelo casamento com Célia Maria. E avô de Maria Eduarda, a quem ele tinha um apego enorme, a ponto de proclamar, orgulhoso, que a neta era o maior presente de sua vida. Viajou em paz.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

Contato: [email protected]

Francisco Cartaxo

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Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

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