A morte e os guardados da alma
Desde à véspera do dia de finados que penso na morte. Digo melhor, a ideia de morte ronda a minha mente, remexevivênciasescondidas na memória. Contudo, não me apoquenta a aproximação de minha própria morte. Tranquilizem-se, portanto, as pessoas que gostam de mim e se preocupam com meu bem-estar. O sobrosso, se assim devo chamar, está longe de envolver-me, conquanto vozes interiores insistam em desvendaros guardados da alma.Ah, isso é verdade.Lembranças secretas que afloramagora na velhice.
Guardados que abrigam duas visões da morte.
A mais insistente,misteriosa, vem da primeira infância, no dia em quemorreuem Cajazeiras alguém importante. Em casa, os adultos não falavam, sussurravam. Comentavam baixinho, trocando olhares. Fiapos de frases, murmuradas pormeus pais, se aconchegam à minha frágil percepção infantil.
Morreu na hora? Em casa? Na cama.Ninguém socorreu? Não deu tempo. Tudo rápido. Coração? Enfartefulminante. Coitado. E agora, como vai ser? Todo mundo vai saber, Deus do Céu… Que complicação. Um homem tão bom. Respeitado. O prefeito.
Eu só fui ter consciênciada gravidade daquele episódio anos depois. Criança,nem sequer sabia o que era prefeito.O coronel Juvêncio Carneiro (hoje nome de importante rua de Cajazeiras) era o prefeito, nomeado pelo interventor da Paraíba, Ruy Carneiro, no começo dos anos quarenta do século 20. Elemorreu fazendo amor com sua mulher, amásia ou amante. Pouco importa. Minha percepção só se completouanos depois, ao ouvir conversade homens na bodega de ZucaLudugero, localizadaquase na cabeça da velha ponteque dava acessoao antigo Colégio Salesiano Padre Rolim. Ali, eu gostava de peruar os papos de fregueses e asilados. Foilá que escutei, entre gargalhadas,estassentenças pronunciadas com bafo de cachaça:
– Mas homi, o velho tava trepando…
– Então, morreu feliz!
Essa éa cena de morte mais recuada recolhida em minha memória.
Mais tarde se deu outro episódio. Meu último irmão nasceu doente. Fim de rama, dizia meu pai, não vingou. Ficamos todos à espera do desenlace fatal. Certa tarde, meu irmão Tantino e eu saímos para caçar passarinho no sítio de Antônio Rolim (que naquele dia,por sinal,estava em outra caçada…). Quando voltávamos para casa, o sino da igreja badalou. Tantino,que conhecia os toques fúnebres, decifrou:
– Frassales, Evan faleceu.
Era verdade.João Evangelista morrera no sexto dia de nascido.Uma senhoraveiodar os pêsames à minha mãe e a encontrou de semblante alegre.A visita estranhou e falou como quem pensa alto:
– Mas, pia, morre o filho e ela fica rindo.
Ouvido bom, dona Belinha respondeu em cima da bucha:
– Estou feliz porque Evan morreu como cristão, batizado. Eu ficaria triste se ele tivesse morridopagão.
Eu escutei o diálogo, por isso está gravado com nitidez.
Essas duas cenas, cristalizadasem minha memória, plasmaram a ideia que formei da morte, muito embora, ao longo da vida tenha vivido e sofrido terríveis situações. Algumas trágicas,com pessoas muito próximas a mim:um câncer devastador, um jovem cuspido fora do carro, outro esmagado por um caminhão, um corpo crivado de balas no banco traseiro do próprio veículo.
Nas duas remotas cenas – o prefeito enfartado nos braços da amada e meu irmão anjo -, a morte se associa a mistério, fé, alegria, embora carregada de dor.
P S – Minha mãe morreu há 20 anos, no dia10 de novembro de 1996.
Francisco Frassales Cartaxo
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