Menos um, vivas!
Por Mariana Moreira
Os olhos embaçados de tristeza camuflam a vergonha que lhe contagia e tremula o corpo.
Logo cedo ele finca espaço na porta do supermercado e, com gesto acanhado, estende a mão, suja de sofrimento e fome, apelando a caridade e solidariedade em troca de uns minguados ovos ou pães para aliviar, minimamente, as barrigas famintas da família que, há dias, vem sobrevivendo muito mais da teimosia do que do alimento.
A indiferença de muitos o torna invisível a olhos e empatia de tantos. Outros, com desdém, lhes dirige frases agressivas: “vagabundo, preguiçoso, escória”. No peito um coração aflito se contrai de dor e sofrimento. A imagem dos filhos, pequenos, com olhos espichados nos apelos de pão, lhe turva a alma. Uma lagrima escoteira sulca seu rosto e embaça o que ainda lhe sobra de dignidade. Sente-se um farrapo humano, roto, esgaçado, inanimado.
E, mais uma vez estende a mão em apelo a caridade e solidariedade que, ainda pequeno, lhes fora ensinada, em prosas de catecismo, como marcas indeléveis dos humanos. Lhe povoa lembranças da carrocinha de lanches que ele manobrava pelas ruas da cidade, garantindo as condições mínimas de sobrevivência familiar. A carrocinha que lhes fora subtraída pelo argumento de ser potencial foco de contaminação da pandemia. Uma subtração barganhada com a promessa de auxílios que, envoltos na burocracia e incompetência governamental, nunca se concretizou.
E, mais uma vez, estende a mão num derradeiro gesto de humanidade. Balbucia tênues apelos que se perdem no turbilhão da pressa dos fregueses que, acelerados pelas atribuições cotidianas, se despem da mínima capacidade de enxergar o outro. Muitos, cristãos fervorosos, não enxergam nas mãos e lábios trêmulos daquele pedinte a representação do Cristo a recomendar: “o que fizerdes ao menor dos meus irmãos é a mim que fazes”.
E o derradeiro fiapo de esperança se dissipa no redemoinho da indiferença. Cabisbaixo, agitando pela angustia que entristece corpo e alma, volta para a família. Os filhos, pequenos reclamam da fome. A mulher, contagiada pelo sofrimento, lhe envolve em um abraço de membros magrelos e secos de vida. Apenas o calor do gesto lhes indica o que ainda teima em existir de traços de humanidade.
E nada mais sobra.
À tarde, em um canto de rua, uma árvore que, nos últimos tempos, com recorrência, lhes servira de casa e abrigo, registra um corpo inerte, sem vida, agitado pelo vento, pendido de um dos seus galhos.
Ora, o que importa. Mais um que se vai e um a menos a comprometer o déficit público.
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