A menina do cachorro e o papa
Por Francisco Frassales Cartaxo
Da varanda do apartamento eu a vejo lá embaixo, passeando com seu cachorro. A cordinha da coleira numa mão e na outra um higiênico saco plástico. Cabelos longos e soltos cobrem-lhe os ombros que compõem e completam um delgado corpo, o short curto a exibir a rigidez das coxas, comprovando a eficácia das idas à academia de ginástica, dia sim, dia não. Discreta blusa mal encobre a beleza, a graça, o exuberante encanto da idade. Linda! À distância, meu olhar seguiu muitas vezes seu caminhar sinuoso no ritmo do animal de estimação, com o desvelo de quem ama. E veja, leitora amiga, eu não gosto de cachorro…
Um dia, ao voltar da caminhada matinal, um simples, alô, nos aproximou. Daí em diante, fiz coincidir nossos horários, amiudando “encontros casuais”, com banal troca de palavras.
E de sorrisos cúmplices.
Esta semana, a conversa demorou um pouco mais. Ela exibia na camiseta um slogan que mais parece uma razão de viver: “Ocupe Estelita”, em alusão à luta de parte da sociedade recifense por manter espaços públicos para serventia de todos e não, apenas, para usufruto de meia dúzia de privilegiados. Privilégios históricos que eles desejam eternos, nesse caos urbano, sufocante das grandes cidades. O tema rendeu papo interessante. Ela, em idade de ser minha neta, a me dar lições de cidadania, a refrescar em mim utopias adormecidas. Embevecidos, descobrimos afinidades. Os dois. E outras mais quando ela tratou, carinhosamente, como “perro” seu amor animal.
Perro? Indaguei, surpreso.
– Sim, sim… os dentes brancos, os lábios abertos numa felicidade de quem está adorando ler romances latino-americanos. Mais uma afinidade, pensei, sem me dar conta da enormidade da distância a nos separar, além do meu desapego a cachorros. Estudante de direito, ela descobriu o prazer da literatura, e anda entusiasmada com os mestres da ficção latina. Uma das minhas cachaças, desde sempre, confessei. Assim, quase deslumbrado com a nova descoberta, nos despedimos.
Eu já atravessava a rua na direção do meu prédio, ruminando, ruminando, quando um grito suave me devolve à realidade:
– E o papa, você viu?
Meu olhar me puxou para perto de seus olhos. E vi um brilho incomum iluminar a rua, apesar do beijo ardente do sol da manhã. O papa Francisco, claro, respondi, encontrou-se em Havana com o chefe da Igreja Ortodoxa Russa e …
– Não, não, eu falo de João Paulo II, das cartas de ternura trocadas com Anna Teresa.
A menina “de lo perro” falou então, em estado de excitação, da revelação feita pela BBC de Londres. Anna Teresa, filósofa americana de origem polonesa, casada, mãe de três filhos, manteve correspondência com Karol Wojtyla, durante 30 anos. Um livro escrito por ele, aproximou os dois quando ele ainda era cardeal, lá atrás, nos anos de 1970. Até pouco antes da sua morte, em 2005, foram 350 cartas escritas por Wojtyla. As cartas estão disponíveis na Biblioteca Nacional da Polônia, desde 2008.
Comentamos a notícia, com uma ponta de malícia, e cheios de convergências, apesar das diferenças que nos separam. A idade física, os projetos de vida, ela no encanto-sonho da juventude e eu na trilha de chegada ao cimo da montanha, com meus pés, meus receios, minhas ilusões desfeitas, em eterna briga de esconde-esconde com novas quimeras.
Quem diria, a menina “de lo perro”, que antes eu via lá embaixo, ainda me prometeu na despedida: vou pesquisar sobre as cartas, depois a gente se fala, tá ligado?
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