Júlio Lancellotti, a pedra!
Por Mariana Moreira
Quem é este profeta que, na imensidão de pedras e concreto, marreta espaços de vida inventando esperanças e rabiscando desenhos de humanos seres?
Quem é este obstinado que teima em fazer brotar decência onde a tirania finca dor e morte?
Quem é este visionário que afaga humanidade onde o lucro, a ganância e a usura enxergam somente dejetos humanos?
E ele lá está, solitário em sua obstinação, quebrando pedras, aplainando íngremes recônditos que a ignorância e a insensatez humana recomendam como necessária atapetar de pontiagudos retalhos de pedras para afugentar quaisquer possibilidades de pouso e moradia.
Quem é este que se atreve vivenciar os ensinamentos do Nazareno como experiência de vida, impregnando corpos e sentidos com o odor dos propositalmente renegados e intencionalmente esquecidos em marquises, calçadas, viadutos?
Entranhando em poros e pelos a dor, a angústia e a desesperança de anulados pelas drogas, de invisibilisados pela violência, de inebriados pelo álcool, de despidos de dignidade ele apenas enxerga em cada um o irmão de sina e sangue, o pariceiro de jornada, o caminhante da mesma trilha.
Enxerga e acolhe iguais em decência e origem, apesar das diferenças e assimetrias inventadas pelos homens e suas engenhosas e perversas arquiteturas de modelos e conceitos sociais, políticos, culturais que aparta, classifica e distribui em guetos e calabouços farrapos e destroços de humanos corpos e almas.
E no viaduto apinhado de intransigentes gestos formatados em pontiagudas pedras não sobra espaço para os desvalidos. Não tem cheiros e cores de roupas sujas e esfarrapadas, de rostos fincados e mau cuidados, de vozes trôpegas e desarticuladas, de apetites insaciados em parcas marmitas e restos de comidas recicladas de lixeiras.
Quem é este profeta que transforma becos, viadutos, guetos de renegados em altar para a pregação da boa nova?
Quem é este que partilha com os excluídos a centelha da esperança que, secularmente, vem alimentando caminhos e veredas dos que acreditam na utopia de homens iguais?
Quem é este que, no sublime ritual da transformação do pão e do vinho em corpo e sangue do Crucificado, faz viva uma igreja humana e santa em sua vocação para a irmandade de filhos do mesmo Pai?
Ora, este é somente um transgressor, um visionário que acredita em humanos direitos quando o humano se esmigalha em farrapos drogados, violentados, desterrados. Que defende a concretude da vida digna para todos, ao arrepio da raça, do gênero, da estética, da crença.
Este é somente quem acredita na humana idade da vida plena, a revelia de dogmas, hierarquias, postos e posições.
Este é somente um profeta do nosso tempo, bradando no insensível deserto de nossa arrogância, “Quando as cercas caírem no chão/ Quando as mesas se encherem de pão/ Eu vou cantar” (Zé Vicente – Utopia)
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário