Iracema nem chegou a nascer
Menino quase rapaz, me meti a ler José de Alencar, quando já estudava no Ginásio Salesiano Padre Rolim. Estimulado pelo clima que existia em casa, vendo a biblioteca de meu pai, me atraiu a obra do famoso cearense.
Ouvia os adultos comentarem cenas de romances, em saraus familiares no terraço da casa onde nasci. Meus pais, tias e irmãs se entretinham, às vezes, à hora do café das 3 da tarde ou à noite, após a ceia, numa época em que não tínhamos receptor de rádio. Tia Ana Sales de Brito, professora, escrevia crônicas, fazia poesias e recitava.
Coisas de intelectuais, pensava a cabeça adolescente, a traduzir a seu modo aqueles animados papos, incorporados aos hábitos na residência do poeta e professor Cristiano Cartaxo. Eu fantasiava Paris pela visão romanesca de minha mãe que, com sua privilegiada memória, narrava cenas lidas em Balzac. Ah, a mulher de trinta! Tenho a impressão que carrego, idealizada, a mulher madura, muito mais por retalhos de conversas ouvidas nessa época do que pelo contato real de homem feito com balzaquianas… Victor Hugo, o nome pronunciado em francês, circulava também da cozinha ao alpendre. De Madame Bovary me ficou apenas o nome. O deslumbre só veio muitos anos depois.
Outras vezes, aparecia no convescote familiar um tal de Eça de Queiroz. Os Maias, uma lapa de volume, passava de mão em mão. Isso fazia espichar repetidas conversas sobre Portugal, com citações de cenários, personagens e cenas presentes, também, no Crime do padre Amaro e em diálogos d’O Primo Basílio. Foi nessa época que ouvi, sem entender bem, risos irônicos dos adultos a propósito da petulância verbosa de um certo Conselheiro Acácio. Até cheguei a pensar que se tratava de um conhecido, um parente nosso, de nome Acácio, irmão de dois colegas meus no colégio dos padres, Adauto e Idézio Rolim.
Meu pai ganhava muitos livros.
Amigos, parentes e visitantes ilustres, que moravam em cidades grandes, lhe presenteavam livros e revistas que não circulavam em Cajazeiras. Um dia lhe deram Sagarana. Curioso, comecei a ler. Bocejei. Que chatice! Voltei a José de Alencar, à saborosa Iracema, a virgem dos lábios de mel, de cabelo mais negro que as asas da graúna a banhar-se na bica-do-Ipu. Que agito na minha cabeça de menino, quase rapaz!
Nas férias fui visitar Crateús.
Lá trabalhava meu irmão mais velho, Rafael. Viajei de Fortaleza a Crateús, de trem, então, o melhor transporte para grandes distâncias. Arretado. A paisagem, o som ritmado das rodas nos trilhos. Nas estações, vendia-se de tudo. Água, café, bolo de milho, tapioca, ponche, cocada, broa, pirulito e frutas de época. Um reboliço. Eu anotava num caderno os nomes dos lugares. Anunciaram Ipu. Aí fui para a janela do trem e toco a espichar o pescoço. Aonde será que fica a bica-do-Ipu? Lá Iracema tomava banho, meu coração tum, tum, tum, louco para descobrir no sopé da serra da Ibiapaba o lugar quase sagrado para o garoto que escrevia, num caderno pautado de capa mole, aquele que seria meu primeiro romance, cheio de descrições de conhecidas paisagens da Prensa, Mata Fresca e Duvidoso. Na falta da bica, as cacimbas do rio da Serragem, que passa bem perto do açude construído pelo meu bisavô, onde a gente costumava pescar. O problema é que as poças do rio eram infestadas de piranhas. Como poderia banhar-se, nua, minha Iracema? Aí o romance morreu. Morreu para salvar a Iracema de minha imaginação.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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