Inusitado preparo cristão para a morte
Por Francisco Frassales Cartaxo – Semana passada, ao abordar os efeitos de queda em pessoas de idade, citei minha tia Catia, que se preparou para a última viagem. Seu sobrinho-neto, Ronaldo Cartaxo comentou a crônica e me enviou mensagem de Fortaleza:
… me fez lembrar que fomos, eu, papai e mamãe, visitá-la durante sua recuperação dessa queda. Ela pediu a tia Biia para vestir a mortalha “para Teca ver se ficou boa”. Deitada na cama olhou para mamãe e perguntou, “E então Teca, o que achou? Quero ser enterrada assim”. Aí começou a ensaiar pequenos sorrisos e a perguntar qual o que ficava melhor para a ocasião. Caímos na risada a cada pose que ela fazia. Até tia Biia não se conteve e sorrindo tentou chamar a atenção dela, “Catia, tenha juízo! Onde já se viu defunta escolher até o sorriso que quer ser enterrada.”
Inácia Sales de Brito era assim.
Ficou acamada algum tempo. Sempre lúcida, impressionava a maneira tranquila como encarrava a iminente morte, ela que sempre fora muita ativa nas tarefas domésticas, nas compras, na leitura frequente de romances de bolso. Perdera quase por completo a audição, por isso usava aparelho auditivo. Ardilosa, quando a conversa a aborrecia, ela desligava o aparelho, deixando o interlocutor a falar sozinho… Depois nos contava entre risadas!
LEIA TAMBÉM:
Em 1986, eu já morava no Recife, quando recebi telefonema: “Frassales, Catia quer por quer ver você aqui em casa, fala toda hora, encasquetou, você pode vir?
Fui vê-la em Fortaleza.
Preciso dizer que Catia era minha madrinha de batismo. Moça velha, me tratava com carinho de mãe. Desde pequeno adorava conversar com ela. Quando foi morar no Rio de Janeiro, a visitei. Passamos um domingo quase todo passeando por muitos recantos, eu impressionado com sua capacidade de adaptação ao burburinho da cidade grande. Da Tijuca, onde morava, ela ia para todos os lugares com desenvoltura, carregando seus 60 e tantos anos!
Mas voltemos a Fortaleza.
Matamos à vontade, uma tarde inteira conversando. Deitada na cama de sua casa, próxima à avenida Bezerra de Menezes, debulhou a vida desde quando morou em São José de Lavras até o retorno do Rio. Quando mocinha, por ser a mais velha, ela ia deixar as refeições do pai, que se escondera num serrote perto de casa, fugindo da perseguição dos sediciosos do Juazeiro, em 1914. Certa vez, um grupo de rebeldes chegou para prender o pai. Com voz firme a mãe falou:
– Zuza não está, tá viajando.
– Viajando?! E essas duas celas ali na forquilha?
– Quem tem duas celas não pode ter três não?
Catia recordou a cena com sorriso maroto, orgulhosa da presença de espírito de vovó. O mesmo sorriso que levou para o céu.
O sol já se recolhia pra banda de Caucaia. Mãos entrelaçadas nas minhas, segurei choro e lágrimas:
– Faltava ver você. Agora sim eu posso morrer, posso morrer.
E repetiu baixinho, baixinho com ar de felicidade.
Sócio da Academia Cajazeirense de Artes e Letras
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário