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José Anchieta

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Francisco, o operário

27/08/2010 às 06h41

As valas cavadas eram profundas e do seu interior surgia um mau cheiro horrível. Havia quem regurgitasse sentindo aquele odor. Francisco, um Francisco qualquer, sem eira e nem beira, conseguiu aquele emprego a muito custo – humilhou-se e teve que dar demonstrações hercúleas de que agüentaria o tranco – e não estava muito disposto a dispensá-lo. As tripas reviravam quando um cano de esgoto era, acidentalmente, estourado; mas as tripas também reviravam de fome, quando o dinheiro da quinzena não era suficiente para pagar a bodega.

Cedinho, enquanto atribuía confiabilidade à corrente de sua “barra forte”, preparava-se psicologicamente, esfregando as mãos e aquecendo os calos que a picareta deixou no dia anterior. Não sabia coisa nenhuma das teorias de Freud e de Jung, aquelas que explicavam o que ele estava sentindo, mas sabia perfeitamente – ah, isto sim – que tinha de se sobrepor à vontade de continuar deitado na rede, no canto de seu casebre. Assim inspirado, e sem café da manhã, ia para o seu “campo de batalha”. No caminho, unia-se aos companheiros de odores e de suores para, juntos, ganhar o pão de cada dia.

Não era um trabalho fácil, mas tinha que ser feito. A primeira preocupação era, naturalmente, o salário, mas aquele Francisco também pensava na possibilidade de tornar a sua terra melhor. E, por incrível que pareça, também isso lhe inspirava. O que ganhava no final do mês não pagava minimamente tanto heroísmo. Mas, se sentia muito bem recompensado ao deitar a cabeça no final do dia com a sensação de ter trabalhado bem. E ninguém sentia o que Francisco sentia.

Parece inusitado, não? Um simples escavador de valas de esgoto engrandecendo a humanidade. Era só o que faltava! Exatamente assim pensavam umas platinadas senhoras que, torcendo o nariz, tratavam Francisco com a indiferença própria de quem vive nababescamente nas suas vidas egoístas. E que ironia! Era justamente Francisco que, logo mais, estaria escavando a terra para colocar um cano, a fim de recolher os dejetos fecais daquelas abjetas senhoras. Que ironia! Francisco, que cavava as valas para os canos das fezes não era tão asqueroso quanto quem lhe criticava. Francisco era limpo…

Ao final do dia, com o cair do sol e com a “hora do anjo” sendo recitada na rádio, novamente a bicicleta era inspecionada, dessa vez por mãos trêmulas, e vistoriada por olhos cansados. A vontade de chegar em casa e deitar o corpo triturado pelo sol escaldante na rede ainda armada é o combustível para cada pedalada, tão sofrida quanto as pancadas com a chibanca. Naquele dia, graças a Deus, não haveria hora extra. Poderia sonhar em comer o pão seco que sobrara do café da manhã – aquele que estava guardado na caixinha de papelão, dentro do baú velho – beber um caneco d’água fria e esperar chegar o amanhã.

Ao longo do caminho de volta, ninguém lembrou – ou teve vontade mesmo – de agradecer a Francisco. Quem passava por ele prendia a respiração para não sentir o seu odor misturado com o da lama dos esgotos. Ninguém…

Obrigado, Francisco. Sei que seu trabalho, não recompensado à altura, tem valor e nos garantirá higiene em nossa cidade.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

José Anchieta

José Anchieta

Redator do Jornal Gazeta do Alto Piranhas, Radialista, Professor formado em Letras pela UFPB.

Contato: [email protected]

José Anchieta

José Anchieta

Redator do Jornal Gazeta do Alto Piranhas, Radialista, Professor formado em Letras pela UFPB.

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