Fantasia e realidade
Acabou a fantasia. Ficaram as imagens festivas da posse do presidente Jair Bolsonaro, os aplausos, os apelos ao mito, mito, mito… o grito-canto da torcida inflamada, o capitão chegou, o capitão chegou! Permanece ainda a imagem da primeira-dama, a mexer mãos, braços e olhos em heterodoxa aparição pública para milhões de brasileiros. Nunca presenciei ou sequer tive notícia de gesto populista tão forte e comovente. Nem Evita Perón faria melhor. Ela que foi, talvez, o mais fulgurante símbolo do populismo latino- americano, ao lado de Juan Domingo Perón. A comunicação, em Linguagem Brasileira de Sinais (Libras), ajudou a prolongar, no tempo e no alcance, os efeitos da euforia coletiva.
A fantasia acabou.
Em seu lugar entra a realidade, muito embora a lua de mel se estenda por alguns meses. Assim é o poder. Nesse período de lua de mel, o dirigente conta não apenas com o apoio, a simpatia da população, mas também com a complacência para pequenos erros, deslizes, fraquezas, contradições e incoerências. Isto é lei universal do poder, aplicada a governos democratas ou saídos de processos revolucionários. A anunciada opção pela transferência da embaixada do Brasil para Jerusalém pode ser um exemplo de precipitada decisão, no intricado xadrez geopolítico mundial, só justificada pelo alinhamento ideológica, fundado em esdrúxula ressurreição da Guerra Fria. Aliás, em contradição com a retórica de Bolsonaro, que, no discurso de posse, falou em acabar com a submissão ideológica. Ora, nada mais ideológico do que o alinhamento à posição de Donald Trump face à divergência entre árabes e israelenses, de raízes históricas milenares. Mas isso pouco importa no clima de fantasia.
O novo governo encontra um cenário complexo: paralisação ou ritmo lento de crescimento econômico, desemprego elevado, déficit insuportável do setor público, crise fiscal, sérios problemas da previdência social, corrupção, notória promiscuidade entre políticos e empresários, desnaturando os partidos. Para além dessas questões, propaladas e repetidas pela mídia, existe, subjacente a tudo isso, o mais grave de nossos problemas: profundos desníveis na sociedade brasileira, entre grupos sociais e regiões brasileiras. A análise histórica nos ensina que a característica fundamental das sociedades pouco desenvolvidas é o desequilíbrio social de renda que, no Brasil, é agravado por tremendo desnível regional. Sem resolver esses brutais contrastes, presentes na base econômica, impossível debelar a crise brasileira. Ao longo de décadas, houve tentativas de solução, algumas com razoável sucesso. Todas parciais e sem continuidade. A Sudene, por exemplo, tornou-se peça chave da fantasia desfeita, na avaliação crítica de Celso Furtado, embora de sua ação resultaram conquistas efetivas notáveis e, também, essencial mudança do olhar do nordestino sobre si mesmo.
Por que falo disso?
Durante a campanha eleitoral e na festa da posse não ouvi uma palavra sequer acerca destas questões, aliás, fundamentais, para o encaminhamento dos problemas estruturais brasileiros. Os desequilíbrios sociais e regionais persistem. Os ciclos de expansão econômica apenas minoram seus efeitos. Não resolvem pela base. Muito menos os paradigmas liberais, preconizados pelos homens do poder no Brasil, trarão a solução desejada. Ao contrário, podem concorrer para agravar os desníveis. É esta a realidade à espera do novo poder, desfeita a fantasia da festa.
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