Eu, violenta?
De repente, cenas de violência estarrecem e deixam um país em pânico. O susto com a trágica dimensão das tragédias suscita debates acalorados nas páginas de jornal, em telejornais e programas televisivos, nas redes sociais. Especialistas de áreas diversas escancaram suas “sumidades científicas” em explicações “inquestionáveis” acerca de autoria e motivação para as cenas dantescas.
Explicações que trazem substrato de cunho religioso, cultural, social, econômico. Todas, porém, com um fio condutor que as atrela em um mesmo campo de compreensão. Independente da motivação que conduz a violência ela tem sempre uma origem: o indivíduo que a comete.
Os sujeitos, enquanto indivíduos, são violentos porque “são pobres”, “são pretos”, “estão distantes de Deus”, “suas famílias perderam os valores da disciplina, da hierarquia, do respeito”. O indivíduo, como apartado da realidade que o produz, o institui e o alimenta reage a esta realidade em ações individuais, muitas espetaculares e dramáticas, mas sempre solitárias e autorais.
Não cultivo a ingenuidade da defesa do determinismo social, mas não perco a perspectiva crítica de ver como os indivíduos, em suas interações sociais, produzem e são produzidos e produtores de seus mundos, crenças e realidades; ou seja, inventam, e são inventados e inventores do mundo onde vivem. Invenções e inventores que impõem, mas resistem, que determinam, mas flexibilizam, que escancaram, mas submergem. Assim, a realidade social, com seus atores, seus atos e suas conjunturas não podem ser creditada a obra de indivíduos ermitões, largados em suas solidões de claustro. Essa realidade produz e é produtora de práticas.
A violência que, no presente, nos amedronta com seu vertiginoso crescimento, tem sua compreensão nestes tempos que vivemos. Tempos em que é apresentado como natural um presidente da República, escancaradamente e com a ampla cobertura da mídia, aliciar e cooptar parlamentares para que rejeitem todas as solicitações de apuração de seus delitos, cometidos enquanto investido na função de mandatário. Uma ação patrocinada com recursos públicos explicitamente desviados dos investimentos necessários à educação, à saúde, à segurança, à moradia, ao saneamento.
Tempos em que soa como natural um ministro da mais alta corte de justiça do país afirmar, em tom de escárnio, que suas funções são “extremamente extenuantes” para justificar uma deliberação de governo em modificar a classificação de trabalho escravo. Ministro cujas condições de trabalho encontram-se a uma distância estratosférica da miserável realidade dos casebres e barracões que abrigam trabalhadores rurais e urbanos, em sua quase totalidade, migrantes (nacionais e estrangeiros) com baixo nível de escolaridade, com pouca ou nenhuma qualificação, e que se submetem a jornadas de trabalho exaustivas, com nenhuma proteção previdenciária, sem assistência de saúde, dormindo poucas horas e em cubículos infectos e humanamente compartilhados com inúmeros outros iguais em condições e sina.
Violência que mostra como natural um Judiciário seletivo e preconceituoso que transforma versões de testemunhas em verdades irrefutáveis, referendadas pelo brilho espetacular da grande mídia, enquanto fatos e episódios comprovados soam como sutis evidências que premiam criminosos com a liberdade e a impunidade.
Assim, atribuindo a autoria da violência a sujeitos isolados nos acostumamos e legitimamos que, de fato, somos agressivos e que esta agressividade nada traz de social, mas pode ser resolvida nos púlpitos das igrejas, nos divãs dos analistas, nas mesas de jantar dos sagrados e invioláveis” lares iluminados pela luz azulada da televisão, pelos esforços individuais de cada um para superar a miséria e conquistar seu “lugar ao sol”.
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