Estranhas vida
O revirar de gavetas e armários sempre marca o inicio de um novo ano quando limpamos lembranças e registros do ano findo. Revirando traças e teias que escondem poeira e bolores de dias passados e tempos esgotados em dias que não mais serão reeditados vamos silenciando eventos e despersonificando entes e seres que se afastam de nossos cotidianos ou que se metamorfoseiam em memórias ou fantasmas esgueirados entre sombras e dobras de páginas amareladas de velhos romances, de caixas envelhecidas com cartas desbotadas, de postais borrados e fitas que prendem histórias e fatos atados em calendários de ontem.
E entre lembranças e relíquias esmaecidas pelo tempo e sua voraz capacidade de converter vida em estátuas, cartas e saudades, vão ganhando autonomia e rebeldia uma correspondência de agradecim4nto pelos comentários gentis a sua obra literária. Me transporto para o tempo de minha militância profissional como jornalista em emissoras de rádio da cidade e como correspondente de jornais da capital. Tempo das velhas máquinas de escrever Olivetti e Remington com suas teclas sonoramente barulhentas e suas fitas vermelha e preta com a eterna aparência de usadas e apagadas. Do rádio escuta e das entrevistas empolgantes. No final da correspondência a assinatura de Ivan Bichara. Não o político, mas o escritor e literato que romanceou episódios de nossa história e que me arrebentam lembranças de infância nas páginas do Carcará.
Outra lembrança se projeta num cartão postal e na gentileza e carinho de Solidônio Palitot e sua irremovível capacidade de amar Cajazeiras mesmo com toda sua vida construída no Rio de Janeiro. Ali o encontrei num final de manhã em algum ano da década passada. Já revelando alguns sinais de debilidade superados pelo apoio da bengala, nos sentamos em uma mesa de restaurante na beleza da praia de Ipanema tendo como cenário para os olhos um profundo mar azul e ao fundo montanhas salpicadas de aves marinhas que pingavam o azul dom céu de pontos multicoloridos. A prosa alegre vagava e oscilava entre a política cajazeirense e fatos e episódios de pessoas que ele conhecera na cidade ou em sua infância e adolescência vividas em casa de sua avô na rua Epifânio Sobreira onde alguns Moreiras do Cipó tinham casa que abrigavam todos nos dias de feira ou nos eventos religiosos e sociais. Depois de muitas horas de conversa farta e frouxa nos despedimos na porta do ônibus que o levaria ao seu condomínio. No peito a sensação de que a gentileza e o afeto entre as pessoas é a mais saudável forma de nos tornamos humanos e de vivenciarmos o sentimento da beleza da vida no gesto singelo do abraço amigo.
Limpo gavetas, pastas, caixas. Devolvo para o inanimado mundo das lembranças as cartas, postais, cartões de Natal. Para que, em outros momentos, o revolver da poeira e do mofo dê vida as gentilezas e amizades que a vida vai nos cultivando nos trilhos de nossas caminhadas.
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