Estrada Macia (II)
Por Cleanto Beltrão de Farias
Em consonância com o que reflexionamos na primeira parte deste ensaio, a questão crucial de nossa crítica não é, tão só, a execução das obras de asfaltamento na antessala das Eleições de 2022. Mas, deixar evidente como tal comando administrativo local se articula com o contexto político nacional e com a atual conjuntura histórica, sem olvidar dos aspectos jurídicos desses atos.
Partindo desses últimos, nunca se viu, na história recente do município, a máquina da Prefeitura Municipal de Cajazeiras tão azeitada e operando a todo vapor, como nesta primeira quinzena setembrina. De um lado, capinadoras elétricas, com seus roncos característicos, vêm quebrando, diariamente, o silêncio das manhãs dos bairros, desbastando o mato das calçadas e das ruas; varredores se esmerando na limpeza dos principais logradouros; equipes retirando entulhos, por semanas acumulados, ou ocupadas com a coleta de lixo dos domicílios, com muita presteza e abnegação.
De outro, agentes da prefeitura em visitas a residências, promovendo a saúde familiar, combatendo a dengue, a zika e a chikungunya, bem como funcionários da Secretaria de Agricultura e Meio Ambiente informando e orientando os moradores sobre a coleta seletiva de lixo. Do mesmo modo, novos projetos de iluminação sendo implementados nos espaços públicos da urbe, lâmpadas trocadas e buracos tapados, sem se falar de uma rede de assistência de saúde, contratação de terceirizados, melhoria de estradas e acessos da zona rural, sincronizados a um conjunto de trocas de favores diversos da maior magnitude.
Em suma, uma inusitada orquestração de obras e serviços posta para funcionar nas vésperas de uma eleição, combinada com vinte e três ruas asfaltadas de última hora. Se não fosse pela excepcionalidade descrita, evidente que tais procedimentos administrativos integrariam o curso normal de uma operosa e transparente gestão governamental. Mas não é isso o que acontece, senão o uso escancarado da máquina estatal, onde o interesse público se confunde com o interesse privado, cuja pretensão é interceder, claramente, nos resultados das urnas, elegendo este ou aqueles candidatos da predileção do chefe do executivo municipal.
Reportando-nos à sincronia desses atos administrativos locais com o contexto político ditado por Brasília, em tempo algum o município de Cajazeiras logrou tamanho prestígio político de parlamentares liberais afinados com o prefeito José Aldemir (PP). De todos eles, o mais importante é o deputado federal Agnaldo Veloso Borges Ribeiro, da mesma legenda do nosso mandatário e autor da emenda orçamentária que viabilizou as verbas de asfaltamento das vinte e três ruas. Candidato a reeleição, Agnaldo faz dobradinha com a Doutora Paula (PP), esposa do prefeito que pleiteia recondução à Assembléia Legislativa. Além dele, Wilson Santiago (PR), Welligton Roberto (PL), Efrain Moraes Filho (PSD) e a senadora Danielle Veloso Borges Ribeiro (PSD), irmã de Agnaldo. São parlamentares da base de sustentação do governo Bolsonaro e integrantes do cognominado “Centrão”, liderado pelo alagoano Arthur Lira (PP), presidente da Câmara dos Deputados.
Neste arranjo atual do poder político local e regional, dois fatos se impõem na presente análise: o ressurgimento da figura do político influente, dotado de prestígio e de fartos recursos financeiros oriundos das emendas do orçamento, em substituição às politicas públicas urbanas, até então estabelecidas pelo Ministério das Cidades. Este ministério, criado em 2003 durante o primeiro governo Lula, visou combater as desigualdades sociais, humanizar o espaço urbano e facilitar o acesso da população à moradia, ao saneamento e ao transporte. Com isto, toda política de desenvolvimento urbano, prevista na Carta Magna, passou a ser gerida por aquele ministério, que instituiu a nova Política Nacional de Habitação, chegando a dispor, em 2015, de 28 bilhões de reais de verba orçamentária. A título de exemplo da ação exitosa do MCID em Cajazeiras, o programa Minha Casa Minha Vida, no plano da moradia popular, revolucionou a expansão do espaço citadino e provocou intensa movimentação da economia local e regional, com a geração de emprego e renda. Nesses termos, quase duas mil unidades habitacionais foram contratadas, até 2016, através de financiamento da Caixa Econômica Federal. Fenômeno que ainda está a merecer uma análise aprofundada para descortinar a sua real dimensão, importância e abrangência.
Contudo, em 2019, o governo Bolsonaro, em flagrante retrocesso – o que é bem a sua marca distintiva – extinguiu o Ministério das Cidades ao fundi-lo com o então Ministério da Integração Nacional, resultando no atual Ministério do Desenvolvimento Regional. E, simultaneamente, fazendo ressurgir, tal como acorre nos dias de hoje, a velha política personalista, neo-coronelista, do toma lá dá cá, exercida junto a prefeitos pelos deputados e senadores da base político-partidária, com mandatos em Brasília.
Essa política retrógrada e em nada republicana fora instituída em 2019 pelo Congresso Nacional, majoritariamente fisiologista, e que, em compadrio com o atual governo, ampliou as emendas de orçamento vinculadas ao relator, dando origem ao famigerado “orçamento secreto”. Isto representou o fim das políticas públicas planejadas para os municípios através dos vários ministérios que compõem a administração da União. Para o deputado federal Patrus Ananias (PT-MG), “essas emendas representam o fim das políticas públicas, já que não precisam estar vinculadas aos programas das áreas de saúde, educação, segurança alimentar, entre outras.”
Por sua vez, o deputado federal Elvino Bohn Gass (PT-RS), ao tecer considerações sobre tais mudanças, declarou que “a distorção da política é quando o orçamento e as indicações, que deixaram de ser projetos republicanos, passam a ter projetos de execução por parte de alguns parlamentares, não no sentido de estar dentro das diretrizes gerais para que o país possa ter sua soberania, seu desenvolvimento, mas com critério de atendimento das suas bases eleitorais.” Complementando esse raciocínio, a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Paula Élida Graziane, em manifestação sobre referidas mudanças, prestada no portal BBC News (05/09/22), disse que “o orçamento secreto balcaniza, pulveriza o dinheiro público, quebrando a racionalidade do planejamento de cada política pública, o que só os ministérios conseguem fazer em âmbito nacional, porque a concepção da política pública é concentrada em quem tem capacidade de planejar o território inteiro do país, e não apenas atender à base eleitoral de um determinado parlamentar.”
O segundo fator complementar deste arranjo político é, exatamente, o “orçamento secreto”. Para compreender suas injunções no governo municipal, cumpre-nos estabelecer alguns esclarecimentos. Primeiramente, o que significa “orçamento secreto”? Consiste na liberação de verbas do orçamento, oriundas de emendas do relator, sem identificar o deputado ou o senador beneficiário nem a destinação desses recursos. Secreto porque sem transparência. Para um melhor entendimento, anualmente o Governo Federal apresenta uma proposta orçamentária ao Congresso, vigente para o ano subsequente, onde prevê os seus gastos (custeio) e a aplicação de seus recursos disponíveis (investimento). Essa proposta se apresenta sob a forma de projeto de lei que, se aprovado, se transforma na Lei Orçamentária Anual – LOA – de cada ano. Como o Brasil é regido por um presidencialismo de coalisão, onde o Presidente da República costuma formar sua base no Congresso, negociando acesso a cargos e a verbas, parte desse orçamento é executado pelo Parlamento, através de emendas apresentadas à LOA por deputados e senadores, cujos recursos se voltam a investimentos em suas bases eleitorais, nos estados e municípios.
Existem quatro tipos de emendas parlamentares: a) individual; b) de bancada; c) de comissão e d) de relator. A emenda de relator é estabelecida pelo deputado ou senador escolhido como relator-geral da LOA de cada ano. É nesta emenda que se aloja o “orçamento secreto”, pela falta de transparência na sua postulação e destinação de seus recursos. Antes de 2019, a maior parte das verbas orçamentárias controladas pelo Congresso advinha das emendas individuais, onde os valores são distribuídos equitativamente entre os parlamentares, dispondo de total transparência no tocante à identificação do postulante e como ele fará uso desses recursos em suas bases. Entretanto, a partir daquele mesmo ano, no decorrer da votação da LOA de 2020, o Congresso Nacional, comandado por Rodrigo Pacheco e Arthur Lira, decidiu ampliar, enormemente, as verbas das chamadas emendas de relator, elastecendo-as para R$ 30 bilhões e transferindo uma grande fatia dos recursos dos Ministérios para o Congresso. É este relator-geral quem centraliza as demandas de seus pares e as envia para os Ministérios executarem esses gastos, através de uma negociação envolvendo os principais líderes, especialmente os presidentes do Senado e da Câmara.
O contexto do aparecimento do “orçamento secreto” se vincula à idiossincrasia do próprio governo que, no primeiro ano de seu mandato, não aceitava indicação política para ministérios que gerenciavam vultosas verbas, a exemplo da Saúde e Educação. Diante disso, a classe política, ao perder parte do domínio do orçamento federal, decidiu direcionar esses vultosos valores para dentro do próprio parlamento. Demais, a queda de popularidade, o envolvimento em denúncias de corrupção e de crimes de responsabilidade, bem como a necessidade de apoio do Congresso para as reformas pretendidas, levaram o governo fascista de Jair Bolsonaro ao controle do “Centrão”. O agrupamento de partidos conservadores que costuma apoiar qualquer governo, contanto que tenha acesso a verbas orçamentárias e a cargos nos altos escalões da República. De tal modo que o “orçamento secreto” se tornou a matriz fundamental dessa atual equação política.
As principais críticas ao “orçamento secreto” são a ausência de transparência e de planejamento no uso desses recursos, o que dificulta a fiscalização e propicia esquemas de corrupção. Segundo o jornal O Estado de São Paulo, de maio de 2021, R$ 272 milhões foram usados para a compra de tratores, retroescavadeiras, caminhões de lixo e equipamentos agrícolas, destinados aos municípios, todos com valores superfaturados.
A bancada paraibana filiada ao “Centrão” foi deveras beneficiada pelo “orçamento secreto”, com a liberação de R$ 536 milhões, segundo noticiou o jornal O Globo, do Rio de Janeiro, em maio do corrente ano. Destes, cerca de R$ 205 milhões foram recebidos pela senadora Daniella Ribeiro, R$ 81 milhões pelo deputado Wellington Roberto, R$ 28 milhões pelo deputado Wilson Santiago, e R$ 16 milhões pelo deputado Agnaldo Ribeiro. Todos eles com base eleitoral no Alto Sertão Paraibano e empenhados na reeleição do Presidente Bolsonaro. Tais cifras apenas foram reveladas por determinação da ministra do STF, Rosa Weber, que exigiu do Congresso transparência e prestação de contas completa desses valores.
Neste desiderato, a transparência é um princípio fundamental da democracia. Na administração pública, é decorrência do Estado Democrático de Direito, assegurado pela Constituição Cidadã de 1988. A transparência administrativa se realiza pela publicidade, pela motivação e pela participação popular, não existindo plena democracia sem a superação da opacidade dos atos administrativos. Sob esta compreensão, a administração do prefeito José Aldemir é em quase nada transparente. Prova insofismável disso é a necessidade de mostrar serviço às vésperas de uma resolutiva eleição.
Não obstante, Cajazeiras tem reproduzido, nos quadros de sua administração municipal, gestores ultra-conservadores, liberais, reminiscentes da ditadura militar, que nada têm contribuído para uma gestão republicana da cidade, popular, inclusiva, mais democrática, mais transparente, que beneficie, realmente, a grande maioria da população. Neste aspecto, poderíamos enquadrar essas administrações – que nada diferem umas das outras – como um ciclo da tirania dos médicos, tão combatido nos anos setenta e oitenta por João Bosco Braga Barreto, de saudosa memória. Torna-se-á indispensável, sim, o movimento progressista da cidade, que ganha cada vez mais corpo e notoriedade, romper com o ciclo de opressão através do processo eleitoral que se avizinha. Obviamente, não será pela aceitação, pura e simples, das obras de asfaltamento. Mas, através da criticidade e da militância ativa, por meio das quais logrará mostrar a sua capacidade de fazer e de transformar. Pois, a estrada hoje macia poderá ser a légua tirana de amanhã, conforme canta o Velho Lua.
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