Era véspera do Natal
Por Francisco Frassales Cartaxo
Lá está ele aguando um pé de jasmim, na calçada do prédio onde mora. Com um balde d’água e uma pequena cuia de plástico borrifa com os dedos a água nas folhas e no chão. Faz das mãos um regador. Calmamente. Em gestos lentos, curva-se várias vezes, exercitando seu cansado corpo do atleta que fora no passado. Levanta a vista por um segundo e vê Mariazinha passar na calçada do outro lado da rua. Seria mesmo Mariazinha, pensa, interrompendo a tarefa de todas as manhãs ou ao cair do sol. Suspira.
Mariazinha…
Rumina. Quem me dera que fosse. Tinha profunda admiração por mim. Não perdia um jogo de basquete no colégio. Me olhava com brilho no olho. Enxergava de longe porque um olhar engancha no outro e fica pregado na alma. Um dia, nos vimos na fila do cinema. Ela na frente e eu um pouco mais atrás. Não precisei procurar cadeira. Junto dela havia um lugar vazio. Ninguém combinou. A gente só se olhara. Agora, sessenta anos depois, Mauro ri abestalhado, ao pensar na cilada armada por Mariazinha. Quer voltar ao balde d’água, mas não pode. Pra que pressa? Mariazinha… seria ela mesma, ah, já sumira na esquina, agarrada ao braço do marido macambúzio. Quantos anos vivemos o poético amor eterno? Dá de ombros o antigo atleta forte, esbelto, alto, entre suspiros.
Breve o pé de jasmim estará coberto de branco, a espalhar seu perfume na redondeza. Mauro sonha com esse dia, enquanto deixa escorrer pelos dedos longos a água para o vigor da planta que ele vem cultivando há meses. Calmo. A mesma calma com que sempre tratou seus pacientes no consultório de pediatra. Se naquele tempo não tinha pressa, hoje é que não tem mesmo. Antes, sua luta era para conservar vidas.
Hoje é para espantar a morte.
Por isso, Mauro rumina tanto. Um dia, já pai de família crescida, enchia seu tempo com os amigos artistas, ele mesmo um cantor. Samba, boleros, samba-canção. Confundiam sua voz com a de Nelson Gonçalves. Era a glória! Gravou discos de grande sucesso e o apontavam no barzinho, ao cair da tarde de sábado, onde dava uma canja de vilão e tudo. Um dia, num fim da tarde, por trás dele, uma voz sussurra a seu ouvido: eu comprei seu disco. O olhar era o mesmo. Meu Deus! O mesmo brilho. A voz um pouco rouca… Mariazinha!
Os cabelos brancos se afastaram do bar. Um braço de homem entrelaçou no de Mariazinha, que flutuou carregada de presentes de Natal para seus amigos secretos. Restou apenas o suspiro.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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