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Mariana Moreira

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Entre silêncios e afetos

06/04/2017 às 17h34 • atualizado em 06/04/2017 às 17h35

Nos domingos, nos reuníamos para almoços de saborosas galinhas e vencidos doces de latas de passadas quermesses

Em minha infância a sua casa era uma extensão da casa do meu avô materno. Nela encontrávamos arrancho e um gostoso pedaço de bolo de leite que saciava a fome de comida e de afeto. No chão polido de cimento vermelho de tua sala de fora disputávamos acaloradas rodadas do jogo de xibiu enquanto, indolente, ondas de fumo de rolo vagavam pelo espaço, emanadas do cigarro de palha de Tio Zé Queiroga.E você, na dimensão de seu afeto e singeleza, apenas olhava de soslaio e sorria para nossas arengas e algazarras.

Mais tarde, em minha adolescência e juventude, sua casa vai se constituindo na derradeira referência de um tempo de inocência, de corredores espaçosos para brincadeiras pueris, de engenhos de rapadura, do pé de muquém. Era em sua casa que, em frequentes domingos, nos reuníamos para almoços de saborosas galinhas e vencidos doces de latas de passadas quermesses. Em sua mais verdadeira expressão de simplicidade acolhia a todos com a mesma distinção dos tantos filhos que desejou ter e das duas filhas que adotou em sangue de afeto e gestos maternais.

E assim, sua vida nonagenária pode ser traduzida na expressão simplicidade e doação. Privada da maternidade biológica doa a vida, o carinho, o cuidado as filhas Honória e Mariene. Gestos que não se esgotam e se repetem nos afagos e agrados a irmãos, cunhados, sobrinhos que, de sua casa, sempre recebiam um mimo traduzido em uma dúzia de ovos, uma porção de açafroa, um frasco de manteiga da terra.

A dor e a saudade, em vários momentos, lhe turvam a alegria. A morte súbita do companheiro Zé Queiroga e do filho neto Wellington lhe marcam o rosto com os talhos da tristeza. Nos olhos uma névoa de solidão passa a lhe fazem companhia constante. Tristeza somada a morte da filha Honória, registrada em terras distantes e de quem ela não partilha o derradeiro adeus. A casa do Cipó começa a ficar vazia e se agiganta a revelia dos seus seis cômodos.
Saudades e tristezas compensadas pela presença da filha Mariene, dos netos, dos irmãos, sobretudo, Bernardino e Bezinha, e de sobrinhos que, com regular frequencia, lhe visitam. Sobrinhos que, nos seus noventa anos, festejam com alegria, agradecimento e presença.

Presenças e visitas que, no entanto, não amenizam a grande solidão que, na velhice, será sua mais permanente companhia. Uma solidão que começa a ser vivenciada no silêncio da surdez que lhe tira as possibilidades de conversar, de ouvir um rádio, de escutar uma televisão. E, como recompensa, apenas e tão somente, as lembranças e memórias emolduradas pela estreita janela da cozinha que lhe vislumbrava a frondosa cajazeiras e fiapos de telhados e caminhos.

E assim, ela seguia na caminhada sem, em momento algum, expressar qualquer sentimento de indignação, revolta ou dissabor. O sorriso lhe aliviava o rosto com a benção de um sobrinho, as prosa de um amigo ou vizinho, um texto lido em algum escrito que lhe caia as mãos.

Sua morte, Tia Dora, quebrou o derradeiro lanço presente que me ligava a infância. Agora, somente saudade e silêncio, como tua surdez senil, a lembrar o inexorável ritmo da vida.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

Mariana Moreira

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