Em nome de quê?
Por Francisco Frassales Cartaxo – Na velhice se enxerga melhor. Menos por leituras e mais pelo que se vivencia e acumula ao longo do tempo, vendo e ouvindo. Aos três anos, na seca de 1942, vi um menino ficar com as costelas de fora, em menos de dois meses, e exibir sua fome: dona me dê um decomezim. Ainda hoje guardo o fio de sua voz cantante, repetida todos os dias no portão lá de casa. Seu corpo descarnado me impregnou mais do que a tragédia da II Guerra Mundial, que eu sabia em conversas dos adultos, nas imagens distantes. Meus olhos, porém, viam o couro e os ossos. A fome bem ali, na voz morrente: dona me dê um decomezim!
Minha alma infante gravou.
Mais tarde, eu vi alunos do Ginásio Salesiano, alvoroçados em nome da fé cristã, apedrejar comunistas, insuflados por padres italianos, adeptos de Mussolini. João Lé e Sabino Barbudo, sussurrou meu pai, dois gatos pingados. Mas isso só mexeu a minha consciência, em 1961, quando soldados armados de fuzis ocuparam ruas de Fortaleza para impedir passeata de estudantes pela legalidade da posse de Jango, eleito pelo povo. Nessa mesma noite, a Polícia Estadual nos botou para correr da Praça do Ferreira debaixo de cassetetes.
Três anos depois veio a paz de cemitério.
Polícia baiana e Exército prendiam, espancavam subversivos e corruptos, apontados pelos novos donos do poder. A gente ia sabendo em fiapos de confidências. Fulano foi preso. Pegaram sicrano. A tortura ganhou novas formas. Minha aluna na Católica de Salvador sumiu. Jorge morreu nos porões do Rio. Mal cheguei ao Recife, soube, dessa vez foi padre Henrique. Amordaçaram a imprensa, amoldaram o Poder Judiciário e os parlamentos ao jeito de governar das ditaduras. Importaram métodos de impor a vontade do poder da força.
Muitos sofreram na pele.
Embora em área periférica, no governo de Ivan Bichara enxerguei outros ângulos. Conheço o passado de todos eles, falou Ivan diante de meu espanto, ao vê-lo elevar a voz o dedo em riste. Gesto raríssimo.
O silêncio cedeu lugar à esperança. A Nova República da conciliação de Tancredo/Sarney fracassou. Acumulei vivências. Essa gente pegou em armas para me depor, me disse o governador Miguel Arraes, o olhar perdido no canavial da Várzea pernambucana.
A velhice ensina.
Há valores fundamentais: democracia, liberdades, combate à fome. Fico triste quando sinto que muitos esquecem a lição de José Américo de Almeida, ver bem não é ver tudo, é… Por isso, relevam a gravidade do atentado de 8 de janeiro e desprezam fundamentos indissociáveis, democracia, desigualdades. E até a fome.
Em nome de quê?
P S – Ao cronista Gonzaga Rodrigues nos seus 90 anos.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
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