Doutor, São Paulo é uma ilusão
Foi aquele… foi aquele… disse a mulher, em voz baixa, os dedos trêmulos na direção do ônibus, já em movimento. O marido quis gritar, desça daí seu fi-de-rapariga pra eu quebrar sua cara. Mas nada falou. Só engoliu, ao lado da cara-metade que apontara a janela, onde se acomodava um estranho, com riso de mofa. Só então ela completou a cena vivida no transporte cheio de gente, ele se encostando nela, aproveitando-se das freadas do carro e dos empurrões – dá licença, por favor, dá licença -, de gente na hora de descer do veículo. Narrou tudo? Quase tudo. Escondeu do marido a sensação do membro duro a roçar sua bunda, na agonia da volta para casa no fim da tarde.
Era costume seu esperá-la, quando o horário de pegar no serviço lhe permitia. Morava perto do emprego, emprego de vigia, fardado, por indicação de um conterrâneo ambientado em São Paulo, há muitos anos. Zefinha viera com ele do sertão nordestino, logo após o casamento antecipado, condição imposta pelo pai. Só depois da união abençoada por Deus e pelo padre, como o sogro falou ao velho sacerdote. Tonho bateu perna até se arranjar. Ela teve a sorte de conhecer uma vizinha que lhe abriu caminho para o emprego de doméstica, embora num bairro distante daquela cidade sem fim.
Vez por outra, perguntava pelo desgraçado, ele pegou o mesmo transporte, hein, Zefinha, o merda tava hoje? Ouvia a negativa. Sempre. Deixou de indagar, mas persistiu na tocaia em vários pontos de ônibus. A cara de riso do fio-duma-égua ficou marcada na memória. Seria capaz de reconhecer até no escuro. Bastava olhar. Tempo para procurar ele tinha de sobra. Vigia noturno, sua tarde era livre para tocaiar a caça. Ora, eu fiz isso muito, com a espingarda soca-soca na beira do açude, dizia de si para si, como a querer reforçar sua determinação para não esmorecer o desejo de um ajuste de contas.
Um fim de tarde, num ponto de parada, a uns 800 metros de sua casa, ele enxergou um claro na descida do ônibus. É ele, é ele! Vestia calça jeans e camisa de malha vermelha. Da calçada da padaria, bem movimentada àquela hora do entardecer, teve a certeza. Seguiu os passos do fela-da-puta até ele dobrar numa ruazinha transversal. Conferiu a hora e o ponto do ônibus. E vários dias se postou nas imediações, certo de agarrar a caça, que nem fazia no sertão, afeito ao manuseio de sua velha soca-soca.
Agora era só esperar.
Passou a usar camisa de pano e procurar as sombras da cidade grande. Sempre em lugar diferente, misturando-se com gente na lanchonete, na farmácia, nas imediações da parada do ônibus. Até que o dia chegou. Foi tudo muito rápido, na ruazinha deserta.
Na manhã seguinte, deu no rádio: um homem foi morto à faca perto de casa. Motivos e autores desconhecidos. O delegado do distrito policial …
– Eu ouvi, doutor, na rádio, no dia que eu ia viajar mais Zefinha. Ela não sabia de nada. Só teve um sobrosso. Na véspera da viagem, notou uma coisa estranha, me lembro que nós tava na cama, aí ela disse: que é isso, Tonho, tu hoje não sossega… nem com todo o carinho que já fiz, o mundo não vai acabar, homem de Deus, a gente só vai é visitar nosso povo!
– Doutor, ela nunca vai saber.
– Mas ele soube, o fi-de-rapariga. O motivo… ora se soube! Antes de meter a faca no pescoço lá dele, eu soprei bem direitinho no ouvido do sacana. Ele nem gritou. Só fez tremer. Doutor, São Paulo é uma ilusão.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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