Dora sem véu
Ronaldo Correia de Brito está com novo romance nas livrarias. O terceiro, desde que saiu o premiado Galiléia (2008), também pela Alfaguara. Sua produção literária se espalha ainda em contos, peças de teatro, crônicas. Cearense de Saboeiro, Ronaldo estudou no Crato até vir para o Recife cursar medicina. Erudito, burila em base firme o que conhece de vivência como médico do sistema público de saúde e jornalista. As raízes sertanejas, entranhadas em sua alma, alimentam suas narrativas, com a competência de mestre da escrita, liberando segredos presos no sertão que carrega aonde vai.
Dora sem véu é fruto disso tudo.
À beira da morte, o pai corroído pelo remorso, implora à filha:
– Ache Dora, ache os irmãos. Me livre desse inferno.
Jonas, ainda criança, viu sua mãe pela última vez ao fugir num navio para o Recife, deixando-a com os irmãos mais novos. Em ano de seca braba, abandonar o Ceará era escapar dos currais do governo, da fome, da sede, da morte. O pai, Jonas, sacode a culpa como fardo nos ombros de Francisca, ao lhe dizer que Dora viajava a pé com os filhos, dias e noites.
Romance maduro.
O embrião de Dora sem véu está lá atrás, no Milagre em Juazeiro, conto narrado na terceira pessoa, inserido no Livro dos homens (Cosac Naify, 2005). Agora, o personagem-narrador é Francisca, socióloga, acadêmica com doutorado na Europa, familiarizada com o Cariri, os folhetos de cordel e a religiosidade popular em torno de padre Cícero. A procura da avó, Dora, começa num caminhão de romeiros do Juazeiro, na companhia de Afonso, seu marido. Este fato não inibe Francisca de flertar com um jovem companheiro de viagem, mais tarde, seu parceiro em ardentes folguedos sexuais. E Afonso? Envolve-se com Daiana, uma devota vestida de noiva, levada pelos pais a Juazeiro, a fim de pagar promessa por ter escapado da morte, após aborto de filho indesejado, praticado com primitivos meios. Um crime de morte dá o toque de suspense. Tudo transcorre em ambiente de religiosidade popular, impulsionada pelo secular milagre da transformação da hóstia em sangue na língua da beata. Nada em Ronaldo Correia de Brito, porém, é linear. Muitos fios se agregam ao cordão principal, num vaivém de dramas pessoais e temas gerais entrelaçados em diferentes épocas e lugares.
As técnicas narrativas usadas não enfadam o leitor.
Ao contrário, dão mais prazer à leitura. A abordagem transversa de assuntos, a exemplo da cobiça internacional da Amazônia, surge em etílica discussão entre profissionais liberais. A narradora, embora presente, não participa dos debates. Por quê? Talvez uma artimanha do autor para não se comprometer no trato superficial da questão. Outros assuntos, antigos e novos, rodeiam a trama central: migrações de povos no mundo, a seca, acidentes de motos, a tragédia diária da assistência médica curativa na rede pública de saúde. Neste caso, predomina a voz do personagem Wires, o falso devoto que se fez amante circunstancial de Francisca, a neta de Dora.
Dora sem véu está dividido em 28 capítulos sem nome. Quase todos conduzidos por Francisca, embora aqui e acolá haja truques e variações para seduzir o leitor. É assim no capítulo 27, todo ele, um diálogo entre dois personagens, cujos nomes sequer aparecem, dispensados pela habilidade ficcional do autor. Outras vezes, monólogo interior mais parece voz de narrador onisciente, quando nada mais é do que recurso narrativo.
E Dora?
Apesar de sempre lembrada, ninguém sabe, ninguém viu. Igual a milhões e milhões de Dora sem véu, que peregrinam, anônimas, sem rosto diante da indiferença da sociedade.
Autor de Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras no cerco ao padre Cícero.
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