Diálogo do amanhecer
Ontem acordei com um som estranho perto de mim. Não era voz humana nem canto de pássaro. Muito menos buzina de carro ou moto ou de sirene de ambulância ou caminhão de bombeiro. Entre dormindo e acordado, estive para recobrar a consciência. Num minuto, porém, enxerguei uma luz piscando do meu lado. E ouvi o ruído, entrecortado, na imitação de voz de gente cansada, meio fanhosa, anasalada. Já desperto da longa noite de sono, senti que meu celular queria falar comigo. Quando? Três dias após ser eleito presidente do Brasil, capitão Jair Bolsonaro. Caramba, quem sabe, ele possa me dizer segredos guardados da campanha eleitoral, raciocinei antes de lhe dirigir a palavra.
– Ah, então foi você que falou?
– Foi, foi… preciso lhe contar umas coisas, agora, já não suporto mais tanta besteira acumulada na memória.
A nervosa voz rouquenha me assustou.
– Claro, claro, desembuche logo.
– Agora já posso conversar. Nesses dois meses mal tinha tempo para transmitir mensagens, uma atrás da outra… nunca trabalhei tanto, sabe?
– Mensagens alvissareiras, arrisquei.
– Ih, ih, que nada. Xingamento, palavrão, represálias, raiva bruta e raiva destilada entre amigos. Falsidade. Intolerância. Preconceito. Ódio. Para ser sincero, nunca armazenei tantos desaforos, intrigas e ameaças. Um horror. Até apelos viravam agressão.
– De qualquer sorte, havia diálogo.
– Diálogo de surdos, isso sim. Parecia coisa encomendada às fadas do mal. Bruxas costumam separar amigos, tá ligado, infernizar a vida de amigos, de parentes, tios e tias, primos, netas e avós, irmãos. Pais e filhos. Tá bem, tá bem, eu voto na merda do PT! Até eu, programado para guardar tudo, até eu me desconfigurava com tanta violência.
– Faço ideia de sua angústia, eu que não ouvi da missa um terço. E as mentiras?
– Ah, a mentira reinou de cabo a rabo. Mentira chique. Importada… espia o nome, Fake News! Coisa de gente metida a besta.
– Se Ariano Suassuna ainda estivesse aqui, hein.
– Pois não é. Vídeos e áudios, montagens grosseiras produzidas, ninguém sabe em que laboratório de sacanagem política, para destruir a reputação de candidatos. E todo mundo via e ouvia. Uma loucura! Amigas e amigos se aperreavam. Perdiam o sono já tomei o segundo Rivotril e não faz efeito nenhum, toma outro, amiga, amanhã você se recupera, recupera um cacete, ontem foi a mesma coisa, então desligue essa merda de celular, (viu, sobrou pra mim…) saia desse grupo infeliz… como? são todos da família, mande sua família à pqp, caralho, ela só faz aporrinhar meu juízo, então só tem um jeito, largue tudo de mão e tome uma cana, um uísque e se entregue à música. Cansei de escutar conversas assim, tá ligado?
– Meu querido celular, já estou de saco cheio só em ouvir sua narrativa. Mas, me diga uma coisa, como foi no domingo à noite, depois que saiu o resultado?
– Nem me fale. Um horror! Perdeu por isso e por aquilo… e tome escracho. E os vencedores? Aí, correu ameaça, vamos baixar o pau naquelas… E os nordestinos? Valha-me padim Ciço, nosso povo virou um magote de ignorante, pobre safado, só muita peia, tudo comprado pelo Bolsa Família.
– Chega, chega, magote de ignorante uma ova…
Desliguei o celular. Instrumento ordinário, leva-e-traz sem futuro, peça miserável, provocador de intriga, fofoqueiro de uma figa, vá perturbar a paz na casa do… bem longe, onde o vento faz a curva agarrado ao diabo.
P S – Oxente, a culpa é do celular?
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