De pardais literários e de irmãos
Pardais são aves originárias da distante Ásia, de onde se espalharam por muitos outros lugares. Vieram para o Brasil no século 20, trazidos, dizem, para combater mosquito que infernizava as pessoas. Mas isso não interessa. O que me importa agora é a presença do pardal na literatura. Vez por outra a gente lê em romances estrangeiros referências a esses pássaros, que entram em cena para dar um toque de suavidade à narrativa. Esses detalhes chamavam nossa atenção, em tarde de ócio, num papo com meu irmão Higino.
Conversa em Fortaleza, cada um deitado numa rede, a falar de leituras, prosa e versos, de formas de narrar. Higino Rolim Neto (herdou o nome do nosso avô), dez anos mais velho do que eu, àquela altura já se exercitava na arte de escrever. E até já publicara, em livros, textos aos quais chamava de crônicas, contos e recordações. Eram fantasmas expulsos da sua alma, travestidos em linguagem literária. De minha parte, apenas produzira até então rascunhos de ficção e ainda não tivera a ousadia de divulgá-los. Higino teve sorte. Contou com o privilégio da amizade de intelectuais do Ceará que, pacientes, leram seus textos brutos. Leram e opinaram, como fez o professor Moreira Campos, talvez, o contista cearense mais sofisticado do século 20.
Dele é o conto Dizem que os cães vêem coisas, que eu não me enfado em reler. Nele, Moreira Campos narra, com forte emoção, o afogamento de uma criança numa piscina em dia de festa. Na abertura do texto ele traça o perfil da morte com invejável e quase perfeita concisão:
Ela chegou diáfana, transparente, no vestido branco que lhe descia até os pés calçados pelas ricas sandálias de pluma. Sentou-se à beira da piscina, cruzando as pernas longas. Chegou antiquíssima, atual e eterna, com sua máscara. Moldada em gesso? Apenas uma presença, porque pousou como uma sombra.
Depois de descrever cenas da festa, com suspense, inclusive a inquietação premonitória dos cachorros, Moreira Campos fecha o conto com o registro do
… momento em que Ela chegara, transparente e invisível, e se sentara à beira da piscina, cruzando as pernas longas, antiquíssima, atual e eterna.
Volto aos pardais.
Naquela tarde perdida no tempo, Higino me dizia que perdera o encanto com a visão real de pardais literários. Lera em obras estrangeiras o deleite de romancistas diante daqueles pássaros, descritos com lirismo como exuberantes aves! Que decepção, me dizia Higino, por conhecer de perto os pardais… Nem de longe o pardal se compara ao concriz, ao galo de campina, à colorida arara ou a um cantante canário. O pardal deles é essa merdinha de ave cinzenta.
E ainda por cima covarde, afeita a molestar em bando outros pássaros. Assim registrava meu irmão seu desencanto ao contrastar a imagem do pardal em narrativas ficcionais com a real visão dessas insignificantes avezinhas.
Tínhamos os dois a mesma impressão.
O que não apequena alguns bons autores da literatura mundial, apenas nos enchia de orgulho dada a riqueza de nossa fauna. Riqueza presente no cotidiano brasileiro até de quem mora na cidade grande. Eu mesmo já a incorporei a meus pobres escritos, como fiz em suave crônica, inspirada em um ninho de bem-te-vi, cuja construção acompanhei, passo a passo, da varanda de meu apartamento aqui no Recife. E o fiz, é bem verdade, com os olhos e o coração voltados para o pé de tamarindo enorme da casa de outro irmão, Tantino, em Cajazeiras.
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