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Mariana Moreira

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Datas insanas

10/09/2023 às 15h40

Maria da Soledade e Luzia Soares, companheiras de Margarida que nos ajudam a contar sua história - Arquivo Pessoal

Por Mariana Moerira – 12 de agosto de 1983. 17 de agosto de 2023. Quarenta anos e cinco dias intercalam estas datas, mas a distância temporal não dissipa a trágica coincidência que as aproxima.

12 de agosto de 1983. Final de tarde de uma sexta-feira, sentada na calçada de casa, na cidade de Alagoa Grande, no Brejo Paraibano, Margarida Maria Alves, aos cinquenta anos, completados sete dias antes, conversava com o marido, enquanto o filho, ainda pequeno, brincava na rua. Um pistoleiro se aproxima e dispara um tiro de escopeta calibre 12, lhe ferindo mortalmente no rosto.

Noite do dia 17 de agosto de 2023. Sentada na sala de sua casa, rodeada por três netos, Bernadete Pacífico, de 72 anos, assiste televisão embalada pelos gritos, risos sonhos infantis que pululam no ambiente. Covardemente, dois homens invadem sua casa e, a sangue frio, a executam com doze tiros.

O lapso temporal escancara a conjunção de uma série de coincidências que, tramadas historicamente, trazem a marca da violência que imprime sua insígnia em corpos e mentes daqueles que ousam construir relações mais humanas e equilibradas.

Margarida Maria Alves, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, se destaca por suas posições políticas na defesa de trabalhadores rurais que, por séculos, foram invisibilisados pelo cambão dos usineiros e dos grandes latifundiários da cana de açúcar. Herdeira das Ligas Camponesas enxerga que a mudança nas condições de vida dos trabalhadores tem estreita ligação com a educação escolar e política. Assim, a mulher simples, trazendo no rosto e na pele o passado na escravização, enfrenta poderosos que, agregados no “Grupo da Várzea”, aliam força econômica e poder político para o mando e desmando em governos, parlamentos, imprensa. E ainda hoje ostentam senadores e deputados como troféus de poder e opressão.

Bernadete Pacífico, uma mulher negra, na luta em defesa dos territórios quilombolas, fez-se voz e presença na construção de espaços, lugares e vivências de uma gente que, escravizada, chega ao Novo Mundo como mercadoria, valendo apenas a força para movimentar os canaviais e as moendas dos engenhos. E, na defesa do território para sua gente enfrentou os poderosos do latifúndio moderno, convertido em agronegócio. Viu um filho ser assassinado pelo poder do agronegócio e sabia que a sua morte também estava traçada nas trilhas dessa história.

Em comum, Margarida e Bernadete são mulheres que, transgressores de uma dita “ordem natural”, rompem as soleiras da casa e ocupam o espaço público, se fazendo voz, vontade, autonomia e, sobretudo, gentes.

Em comum, mulheres que ousaram enxergar o mundo além do tanque e do fogão.

E, assim, suas mortes também trazem a marca dessa heresia de querer ser apenas gente, no ritmo do poeta, que canta: “Gente quer comer, gente quer ser feliz. Gente quer respirar ar pelo nariz”.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

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