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Francisco Cartaxo

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Da usina não restou nem a gravata borboleta

03/08/2020 às 10h09

Coluna de Francisco Cartaxo

Passava de duas horas da tarde quando chegamos, depois de percorrer quilômetros de canaviais. Árvores e sombras em torno da casa grande nos impediam de ver a senzala, se é que ainda estava de pé. Os visitantes, uma equipe técnica do BNDES e eu, fomos recebidas com gestos de fidalguia. Água de coco, sucos de frutas, uísque. Tira-gosto. Tudo servido por garçons vestidos de summer e gravata borboleta. Que estranho para um dia de trabalho, pensei. Espantei-me! Era apenas o começo, após uma manhã inteira entre o verde buliçoso de pés de cana nas terras da usina. Para um matuto de Cajazeiras, que só conhecia pequenos engenhos de rapadura aquilo era fantástico.
O mais fantástico ainda viria.

O velho usineiro surge na varanda onde estamos. Os filhos presentes se levantam, beijam-lhe a mão. Só então somos apresentados. Após meio anel de prosa, ouvimos: pode servir o almoço, ordenou o chefe do clã. Cena de Gilberto Freyre ou de Zé Lins do Rego, rumino. O ritual persistia desde o tempo do império, pensei. O velho sentou-se. Aí, sim, veio a aquiescência para imitá-lo, enquanto o garçom lhe servia uma taça de vinho português. Não estranhe, cochichou a meu lado o genro, é tradição da família desde sempre. Os garçons só abalaram para nos servir após um deles ter colocado as primeiras porções no prato do usineiro à cabeceira da grande mesa de jacarandá.
Por que participei da inusitada cena?

Um dia antes, no gabinete do governador Miguel Arraes, me foi dada a tarefa de acompanhar a equipe carioca do BNDES. O governo de FHC/Marco Maciel tentava “salvar” a usina, que fora uma das mais lucrativas do Nordeste. Modelo de tratos agrícolas avançados naquele tempo, de inovações tecnológicas e de equilíbrio financeiro. Uma exceção em meio à crise estrutural do setor sucroalcooleiro regional.

Usina de açúcar é um mundo, comparada a um engenho de rapadura. Na safra é uma continua movimentação de gente, caminhões pra lá e pra cá, moendas gigantes a vomitar bagaço e escorrer o caldo… Tudo monstruoso. Aquela enormidade me trazia à lembrança a arte de puxar alfenim, em dia de lazer nos engenhos do sertão! Agora, estávamos ali, para conhecer a usina e sentir de perto a decadência da aristocracia rural. Poderosos senhores de terras e escravos que, no passado, constituíram a fração de classe mais poderosa da economia e da política do Nordeste. Vinham da áurea quadra dos senhores de engenho, alguns transformados em usineiros, outros, por eles engolidos, como narrou Zé Lins do Rego em notáveis romances.

Lá atrás, a euforia da lavoura do café no final do século XIX, no Rio, Minas e São Paulo, começou a desbancar “nosso” açúcar da pauta de exportações. Mesmo assim, não apagou valores sociais e morais perversos, simbolizados na distância entre a casa grande e a senzala. E, em outro plano, alijou da cena política nacional, primeiro, barões, viscondes e marqueses do açúcar e, mais tarde, o usineiro-empresário. Donos de terras, escravos e “exércitos” particulares, afeitos à apropriação do Estado, cada um na sua época usufruindo os privilégios do patrimonialismo.

Guardo na lembrança das palavras de doutor Arraes. Dias após aquela visita-trabalho à então ainda ativa usina pernambucana, ele me disse, como quem pensa alto: no passado, essa gente quis pegar em armas para me depor do governo. E pigarreou.
Perderam o poder e a pompa, penso eu agora, nem a gravata borboleta restou.

Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

Contato: [email protected]

Francisco Cartaxo

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Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
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