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Francisco Cartaxo

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Cuba: aragem e tempestade

05/12/2016 às 14h31

Você pode não gostar de Fidel. Aplicar-lhe execráveis adjetivos. Pode até odiá-lo. Impossível, contudo, deixar de reconhecer seu lugar na história dos povos oprimidos. Ele tentou, tentou até derrubar, pelas armas, o ditador Batista, em janeiro de 1959, e mandou fuzilar inimigos, sem piedade. Nessa época, ainda com o apoio do governo americano, encantado com os guerrilheiros barbudos e idealistas. Mas a lua de mel durou pouco. Fidel caiu nos braços dos comunistas. Os russos instalaram bases antimísseis em Cuba. Um acinte. A guerra fria ficou à beira de uma tragédia nuclear. O bloqueio econômico quase aniquila a Ilha. A queda do muro de Berlim, em 1989,desnudou o comunismo, deixando Cuba em pesadelo. Hugo Chávez a socorreu com petrodólares, mas a torneira fechou. Então Fidel viu em Obama uma saída.

Hoje, as cinzas de Fidel percorrem o caminho inverso dos guerrilheiros de Sierra Maestra, no instante em que Donald Trump instabiliza o mundo.Quando Obama assumiu a presidência dos Estados Unidos uma aragem começou a soprar na Ilha. Nessa época, escrevi a alegoria a seguir transcrita.

A cerca. Zé Rulfino sabe que seu avô herdou o pedaço de terra de onde tira o sustendo junto com a família. Nos confins da memória aparecem os índios, seus ancestrais. Da varanda da casa de janelas voltadas para o nascente, Zé Rulfino recorda a luta após descer da serra para reconquistar o chão tomado pelos poderosos. Era jovem, cheio de vigor quando o emissário do vizinho trouxe este recado: o coronel Tilsam quer falar com o senhor,rosnou o capataz e deu meia volta. Zé Rulfinofoi. Fui e ouvi o que não queria, uma conversa dura,disse, o coronel me espiando de cima pra baixo e eu firme segurando meu olhar no dele.

— Meu gado está adoecendo por causa do veneno que você bota na lavoura e desce rio abaixo até minhas terras.

— Não uso veneno nem o rio passa pelas suas terras, coronel.

— Você está dizendo que eu sou mentiroso?

— A conclusão não é minha.

— Pois está, seu atrevido, eu não vou arcar com o prejuízo e tem outra coisa, amanhã esse povinho da Medialuna vai querer seguir a mesma trilha, quem você pensa que é?

Zé Rulfino ainda guarda o tom da voz do coronel, o jeito arrogante a indicar com a mão direita os limites de suas terras, muito além das cordilheiras da Medialuna. Zé Rulfino lutava para sobreviver sem sujeição. Vez por outra, morria uma rês, um cavalo, uma cabra leiteira. Deu parte.Uma vez, duas, três vezes. O delegado nem aí. O promotor, nem aí. O juiz, nem aí. Tudo gente do coronel Tilsam… O padre elevou braços e olhos para o alto. Até para comprar semente, comida, roupa, sapato, remédio era um Deus nos acuda. Ninguém fiava. E a dinheiro? Alguns rejeitavam. Uma cerca enorme impedia a entrada e saída de fornecedores. Teve que pedir socorro longe, muito longe, em língua estranha para não sucumbir. Zé Rulfino reuniu a família: a gente vai se coser com as próprias mãos, viver a pão e água, mas de cabeça erguida. Dias terríveis. Uns poucos viraram inimigos. O grosso ficou, no sacrifício, mas firme. Concentrou-se então na saúde, nos esportes, na educação para todos. Aqui e acolá, porém, ainda espirra um.

Quase meio século de resistência. Ameaças, invasões, fugas, fome. Do alpendre, apoiadona bengala, Zé Rulfino contempla as vastas terras da Medialuna, a mão esquerda na proteção da vista. Pela cerca arrombada chegam amigos que percorreram outras trilhas. Ele ri. Coisa que o coronel Tilsam já não faz com a arrogância de outrora.(O Norte, 15/01/2008).

Agora comTrump, talvez, renasça a arrogância. Ea aragem vire tempestade, Fidel transformado em cinza. Cinza histórica.

Francisco Frassales Cartaxo


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

Contato: [email protected]

Francisco Cartaxo

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Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
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