Confidências de um confinado
Quando, há 20 dias, entrei em distanciamento social estava gripado, como pude constatar depois. Claro que não era a covid-19. Do contrário, não estaria hoje escrevendo esta crônica. Sem mais a gripe, sigo confinado. Detesto esmurrar a realidade, sobretudo se ela é funesta. Que outros a tratem com desdém. Eu não.
Minha intenção era fazer, hoje, uma reflexão sobre o mundo pós-covid-19. Desisti. É cedo. Pelas notícias que chegam, de perto e de longe, o pior ainda virá. Causam pavor as imagens de milhares de indianos, aglomerados em estações ferroviárias ou na estrada, retornando a pé para seus lugares de origem. Não sou pregoeiro do infortúnio da humanidade, mas tremo de medo ao pressentir que a contagem global dos mortos se faça na escala de centenas de milhares. Não me refiro, apenas, às mortes imediatas pelo contágio direto do novo coronavírus. Incluo o imenso rastro de desventura de larga parcela da população mundial. À essa altura, é impossível um exercício de meditação realista. Deus salve o mundo.
Então retorno ao microcosmo onde vivo.
Do hábito de ler jornal impresso nunca me afastei. Mas agora a mulher quis proibir: o coronavírus vem no jornal, não mande subir essa porcaria. Esqueça! Não polemizei. Faço assim. Acordo cedo, peço o JC ao vigia e o leio de cabo a rabo. Quando ela se levanta, o diário está na lixeira do prédio, que nem jornal de ontem. Como posso abandonar um costume que tenho desde menino? Em Cajazeiras, devorava A Imprensa, de João Pessoa, e O Nordeste, de Fortaleza. Se eu pegar o vírus, você já sabe…
E livros?
No começo do confinamento, não pude ler livros porque existia um motivo: preparar a Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL para a votação virtual da reforma do Regimento Interno. Nisso concentrei energias. Deu certo. Depois fui para a leitura-lazer. Cadê a concentração? Tentei Ronaldo Correia de Brito, Milton Hatoum. Não tinha jeito. Lembrei-me dos preferidos. Juan Rulfo! Lia, voltava a ler, relia… E veja que eu sei de cor pequenos trechos: “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Mi madre me lo dijo.” Nada. Não era a língua. Era a mente.
Já intoxicada do vírus da morte.
Me assustava. Que tal reler crônicas de Rubem Braga, Graciliano, Gonzaga Rodrigues? E contos, que tanto me ensinaram, de Gógol, Tchékhov, Borges, Lygia Fagundes Teles. Só folheava. Moreira Campos! Ah, a descrição perfeita da morte em “Dizem que os cães veem coisas”. Não, não, morte não! Basta a desfile macabro de caminhões repletos de corpos italianos!
Então corri aos poetas.
Alguns estavam ao alcance de um clique no “hoje é dia de poesia”… erótica ou exótica? Em tempo da pandemia do novo coronavírus, pulei para o “bom dia” sertanejo. Até que me ligava. Animado, fui revisitar imortais famosos. Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade. Tudo me parecia enfadonho na inusitada dispersão mental. Estou perdido. Intelectual inútil. Nada, absolutamente nada, me prendia. Augusto dos Anjos, mórbido, sorrateiro, martelava. Infiltrou-se. “Sou uma sombra! Venho de outras eras”…Versos, escondidos desde a adolescência, fugiam desgarrados da memória. Fragmentos soltos de poemas recitados em bodegas e cabarés de Fortaleza.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Augusto, Augusto, profeta Augusto, este terceto aponta para um certo morador do Planalto?
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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