Com medo do bem-te-vi
Por Francisco Frassales Cartaxo
Passamos o Natal em Itamaracá. Reforma no teto de nosso prédio nos privou, com as chuvas neste final de ano, de reunir a família aqui casa. A ilha histórica no litoral norte de Pernambuco foi um refúgio. Valeu. O hábito de acordar cedo me levou à praia com o sol acanhado, sem brilho. Na areia não havia quase ninguém. Caminhei solitário aninhado em meus devaneios. Aqui e acolá, pequenas aves marinhas, uma garça a procura de alimento, um vira-lata a farejar… de repente, um urubu? Ao longe, na areia úmida, enxergo o vulto a andar feito um galo sem crista. Ele avança mais do que eu. Uffa, consigo chegar perto. Voou! Não, não é urubu.
Um gavião!
Impossível, pensei. Gavião andando na beira do mar! Pousou num arbusto seco, no pequeno espaço entre o mar e o mangue. Aí pude ver o bico, as asas, as garras. Santo Deus, é da mesma família do carcará! Aquele que João do Vale deu forma poética e musical e, depois, Maria Betânia, mais do que Nara Leão, transformou num grito de guerra e protesto e mobilização e luta dos oprimidos, num tempo de censura imposta pela ditadura. Isso mesmo. Pássaro estilizado, que avoa que nem avião, carcará pega, mata e come, carcará mais coragem do que homem.
Ficou um tempão no galho seco.
Vi de perto, na ida. Na volta da caminhada à beira-mar lá estava ele ainda. Encostei para observar melhor. Voou. As asas longas sumiram por cima do mangue para a lonjura da ilha. Aonde vai o gavião solitário? Não faço a menor ideia. No mangue, nem pousou. Foi além. Quem sabe, tenha um ninho nas proximidades. Ou distante. Aqui no Recife, vejo com frequência gaviões, quase sempre em dupla, a procura de caça. Já comentei neste espaço, mais de uma vez, as surras que os bem-te-vi lhe aplicam. E os enxotam. Certo dia presenciei, da janela da cozinha, um gavião faminto devorar uma manta de carne que a vizinha botou para descongelar na varanda de seu apartamento… ainda conseguiu salvar um pedaço, entre gritos de pavor.
No dia seguinte, incrível, o gavião lá estava de novo no mesmo trecho de praia. Esperei que ele pousasse suas garras no mesmo arbusto seco, que fica entre o mar e o mangue. Meneou a cabeça, bicou os pés, fez do galho um balanço. Mas não repetiu o gesto do dia anterior. Demorou-se pouco. Me encarou. Observou minha camisa amarela, meu boné escuro… e danou-se pelos ares da Ilha de Itamaracá. Voou para além do mangue com medo do bem-te-vi!
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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