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Mariana Moreira

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Carcarás urbanos

28/06/2024 às 20h14

Coluna de Mariana Moreira - carcará pássaro - imagem reproduzida - Pixabay

Por Mariana Moreira – A cena revela o clima dos nossos tempos. Em um terreno baldio onde malcriados moradores jogam sacolas de lixo um casal de carcará com seus bicos “volteados que nem gavião” rasga os volumes plásticos na cata de algum alimento que sacie a carência de “inté cobra queimada”.

Habitantes costumazes de uma gigante antena de telefonia celular instalada nas imediações sou, frequentemente, contemplada com o gralhar de seus cantos e o farfalhar de suas asas ligeiras em assíduos voos rasantes por entre postes, fios, sons e buzinas de automóveis.

Muitas vezes confundidos com urubus, sobretudo pelas gerações mais novas, nascidas e formadas nos espaços urbanos, os carcarás habitantes da antena de telefonia e comensais das violadas sacolas de lixo são a revelação de como nós, humanos, na arrogância de nossa racionalidade mercantil, estamos alterando o equilíbrio do planeta. Produzindo transformações do natural em mercadorias, avaliadas pelo tilintar de moedas e cotações de bolsas, vamos afugentando de seu habitat aves, animais, repteis.

Matas e florestas, consumidas por motosserras, tratores, queimadas, e substituídas por campos de cultivos de monoculturas ou pastagens artificiais mantidas ao peso de fortes e nocivos fertilizantes, herbicidas e defensivos, não são mais abrigo e moradia para as variadas espécies que, amedrontadas e atordoadas, ocupam cidades e convertem hábitos e práticas de vida na desgarrada necessidade da sobrevivência.

E em recorrente momentos nos deparamos com aves, animais, repteis nos espaços urbanos, fazendo de postes, fiação elétrica, torres de templos lugares de moradia. Movidos pela natural necessidade de sobreviver, alteram hábitos e práticas alimentares. E, concomitantemente, são alvos da crueldade e ignorância humanas, acusados de invasores, de móveis para a produção e transmissão de doenças, de empestar as higienizadas construções urbanas com seus dejetos, penas, resíduos, barulho de voos e cantos, desajeitados ninhos e improvisadas tocas.

Assustado com minha sutil presença o casal de carcará alça voo na direção da rede elétrica onde, por instinto, acredita estar resguardado de minha humana maldade. Ganha a parceria de um urubu que, destoado do cenário, também é mais um parceiro desta desditosa aventura produzida pelo homem na construção do que, ironicamente, batizamos de civilização.

E os versos do Chico Buarque e do João do Vale, na melodiosa voz da Bethânia, me inspira na contemplação da cena. Mas, nada de semelhante com o que vejo, e murmuro em desalento:

Mas quando chega o tempo da invernada
No sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim não passa fome
Os burrego que nasce na baixada

Carcará
Pega, mata e come


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

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