Bolsonaro remexe no porão da ditadura
Quando, às vésperas da eleição de 2018, publiquei o artigo, transcrito a seguir, alguns parentes me censuraram. Isso é coisa do passado, vamos olhar para o futuro. Calei-me. Semana passada, o presidente da República, entre outras sandices, citou um preso, que, em 1974, foi torturado, morto e incinerado no forno de uma usina de açúcar. Bolsonaro remexeu na parte mais sombria da ditadura. E o fez com deboche, de forma “cruel, indigna, repulsiva, inaceitável”, como disse o deputado Raul Henry (MDB/PE). Fernando Santa Cruz fora, como Jorge, militante da Ação Popular.
Mataram meu amigo Jorge – Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. A frase é do deputado Jair Bolsonaro, pronunciada na Câmara Federal, no dia 17 de abril de 2016, ao votar a favor do impeachment da presidente Dilma. O coronel Brilhante Ustra (1932-2015) foi comandante do DOI-CODI de São Paulo, de 1970 a 1974. DOI é o Destacamento de Operações e Informação e CODI, Centro de Operações de Defesa Interna, criados em 1970 por meio de instrumentos legais secretos, com a finalidade de investigar ações contra a ditadura. No exercício dessa tarefa, era comum o uso da tortura, que, em alguns casos, levava à morte do preso.
Meu amigo Jorge morreu na tortura.
A notícia de sua morte chegou do Rio, sem aviso prévio, em lacônica comunicação oficial. Problemas cardíacos. Tempos depois, no entanto, a verdade foi sendo revelada pouco a pouco. Verdade cruel. Alguém o viu entrar na sala da tortura, já muito machucado. Depois ouviram gritos de dor e angústia. Urros, mais do que gritos. Submetido a processos primários de aniquilamento físico e psicológico, Jorge não abriu a guarda. Falou o que poderia dizer sem comprometer seus companheiros. Resistiu até o limite de suas energias. Jorge foi um dos primeiros presos políticos a morrer nos porões da ditadura, antes do AI 5, quando sequer tinha sido criado o DOI-CODI.
Quem era Jorge?
Jorge Leal Gonçalves Pereira era um jovem de sólida formação cristã, moldada na Juventude Estudantil Católica (JEC) e na Juventude Universitária Católica (JUC). Integrou o núcleo baiano que estruturou a Ação Popular (AP), no início da década de 1960. Mais tarde, parte de seus militantes migrou para o PC do B. Jorge foi trucidado na prisão antes disso. Engenheiro, trabalhou na Petrobras, em Salvador, mas logo após o golpe de 1964 foi expulso, junto com outros colegas, entre os quais o cearense Eudoro Santana, pai do atual governador Camilo Santana. Livre da cadeia, trabalhou na empresa de energia elétrica da Bahia. Portanto, Jorge não era clandestino, quando o prenderam de novo. Nem terrorista nem guerrilheiro.
Passados mais de 50 anos, trago na memória a dor da estúpida morte de Jorge na tortura, o mais abominável dos atos praticados pelo homem. Ato ignóbil. Covarde. Abjeto. O torturador é um ser desprezível, tanto quanto aqueles que consideram heróis quem tortura, como fez Bolsonaro na sessão da Câmara que votou o impeachment de Dilma.
Saudade da ditadura?
No dia 11 deste mês, Jair Bolsonaro admitiu que o seu objetivo é criar um Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás. O Brasil do AI 5? É disso que o povo brasileiro precisa? O Brasil não quer um regime de exceção, com a quebra da harmonia entre os poderes, censura à imprensa etc. etc. Muito menos o uso da força para fechar o Poder Judiciário, tal como pregam o filho e outros partidários de Bolsonaro. Na época dos sonhos de Bolsonaro, o povo não votava para presidente, governador e prefeito das capitais. Se um deputado contestava o regime, podia ser cassado em rito sumário, sem direito de defesa. Não, o povo não tem saudade desse tempo!
Não se apaga a História. Impossível esquecer a morte de Jorge.
Essas coisas me chegam forte à mente, quando vejo a arrogância do candidato, gritando como quem dá ordem unida em quartel, a fazer o gesto-símbolo de sua campanha. Atirar em quê? Na democracia, é claro. Embora seja crítico do PT e dos desvios das gestões petistas, como registrei em dezenas de artigos, neste domingo, voto 13, Haddad.
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