header top bar

Francisco Cartaxo

section content

Boa noite, Bruna

15/01/2018 às 08h52 • atualizado em 15/01/2018 às 08h53

Pousada Maria Bonita - Fernando de Noronha

Em 2017, Afrânio não queria repetir erros de anos anteriores. Queria agito, clima de aventura, movimentação de gente desconhecida, de preferência, em cenário exuberante. Não que se sentisse mal no seio da família. Não, não era isso, adorava aquele ambiente natalino espichado até o dia de reis. Mas este ano, não. Do fundo da alma vinha um pisca-pisca… quem sabe, esbarraria no inusitado. E ele andava a sonhar com o inusitado. Por isso, escolheu passar o réveillon em Fernando de Noronha. Providenciou reserva na Pousada Maria Bonita.

Ora, a pousada pertence ao ator Bruno Gagliasso, certamente atrairia astros do cinema e da televisão, vistos todos os dias em novela, entrevistas, noticiário. Só em pensar, Afrânio já sentia o baticum do coração, a fantasia solta, bom dia Camila, imaginava-se saudando a filha de Antônio Pitanga.

Bem que Afrânio merecia um bom dia.

Aposentado depois de anos encarrilhados de repetitivas tarefas diárias, Afrânio amoldou-se ao ócio. Por preguiça foi incorporando o hábito de ficar horas e horas diante da televisão e do laptop. Até nos dias de carnaval! Folião de poltrona, sacudiu-lhe na cara um sobrinho, tentando jogá-lo na troça papai e mamãe na folia. O deboche colou feito adesivo, Afrânio dando a maior bandeira, ao falar com entusiasmo de novelas… e, pasme, da paixão por uma certa apresentadora de telejornal noturno. Veja só, ele ficava acordado até altas horas só para ouvir o boa noite da simpática jornalista.

– Aquele boa noite é para mim, exultava, repare no olhar, no jeito de abrir os lábios ao falar boa noite.

Dizia com voz de falsete imitando a moça. Não era piada. Afrânio falava com a convicção de um delator da Lava Jato. A moça não era nenhum modelo de beleza estonteante ou cobra na profissão. Mas, sabe como é, as razões do coração não se explicam assim sem mais nem menos. Afrânio viveu essa paixão platônica, imaginava encontros casuais… coisas de romance ou de mente apaixonada…

Encontros impossíveis para ele que adorava a comodidade da poltrona.

Nos devaneios do seu réveillon na ilha, vez em quando, esvoaçava a gaivota do telejornal noturno. E se ela aparecer aqui de repente, pensava, aí quem vai dar o boa noite sou eu e me revelar seu fã… sou aquele, aquele… telespectador… que espera pelo seu boa noite, todos os dias. Sentia-se ridículo. Voltava à realidade de aposentado, Afrânio, Afrânio, tome jeito…

Na modorra do meio dia, de repente, a brisa do mar de Noronha sopra uma deusa, o perfume a chegar primeiro, a saída de banho a exibir o corpo… quem é, Deus do céu! Esse cabelo, o rosto, o jeito… a brisa inundando a varanda da Pousada Maria Bonita, cada vez mais perto e Afrânio nada de lembrar… até que o grito ecoou,

– Bruna!

Ela voltou-se, gentil, e ele apalermado só conseguiu balbuciar:

– Boa noite, Bruna.

Ela abriu os lábios no disfarce do riso contido diante daquele boa noite em plena tarde luminosa da ilha paradisíaca, justo no dia em que Neymar chegara para coroar sua deusa, no amor vai-e-vem, acaba-e-volta. Amor iô-iô, que provoca suspiros em milhares de seguidores do casal famoso nas redes sociais, a Marquezine deixando no ar a vontade de ter um filho!

Mas isso Afrânio só foi saber mais tarde ao retornar, queimado de sol, já acomodado de novo na cadeira giratória diante do laptop, na ruminação do ridículo do seu boa noite, Bruna, em pleno dia ensolarado de Fernando de Noronha.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

Contato: [email protected]

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

Contato: [email protected]

Recomendado pelo Google: