Binóculo mágico
A vizinha de frente nunca olha o ninho do bem-te-vi. Eu a vejo bem cedo molhar e borrifar as plantas na varanda de seu apartamento. Limpa o chão, arruma as cadeiras em torno da mesa, passa um pano úmido. Esfrega com calma o parapeito oval e estreito. Só consigo vê-la no terraço ou na nesga de sala que fica ao alcance do meu olhar curioso. Outra hora, a mesa fica coberta de papéis. Seriam provas? Na tranquilidade da noite, sem o barulho da rua, ela corrige erros e atribui notas, penso.
Alimento mais ainda o meu ócio.
Não, os papéis são grandes para serem provas escolares. Uma planta? Pode ser uma planta aberta sobre a mesa, ela a analisar traços, sinais, figurinhas, proporções de espaços, problemas. Ah, é arquiteta! De pé, ela procura ângulo apropriado para enxergar melhor. Não vejo bem. Pode ser a planta de uma casa, um apartamento, terreno, loteamento… E se for uma praça? Uma rua? Um bairro? A cidade toda? Não distingo. Talvez seja engenheira. Pode ser. Aquela folha de papel, imensa à distância de meus olhos, quem sabe, o croqui de uma galeria pluvial, uma ponte, rodovia. Ah, sei lá.
Desisto de especular. Contenho a imaginação. Só quero observá-la, ali na varanda, de roupa caseira, de short, a cuidar do alpendre do grande apartamento onde mora. Grande de verdade, muito embora eu não o conheça. Ora, o prédio abriga um apartamento por andar, logo tem espaçosos ambientes.
Tudo isso para uma pessoa só.
Uma mulher ainda jovem. Difícil garantir que é bonita. Feia ela não é, seguramente, ainda que só avalio de longe, como faço agora de manhã bem cedo, o sol mal avermelhando as nuvens. Bobagem, feia e bonita são conceitos subjetivos, não enquadráveis em padrão universal único. Bonita. É uma mulher bonita. Seria Maria? Ou Carolina? Deixa pra lá…
Que faz uma mulher bonita morar sozinha?
Nem sequer sei o nome, como posso ter a petulância de lhe conhecer razões íntimas? Martela em minha mente, no entanto, a “presença” dessa mulher tão cuidadosa com as plantinhas, a varanda e tudo o mais. Daí meu desejo de ter um binóculo. Não um binóculo qualquer desses de plástico que a gente dá de presente aos netos. Nem aqueles usados por rapazes e moças, e velhos também, para xeretar a intimidade da vizinhança. Não quero um binóculo profissional, arma sofisticada nas mãos de guerreiros modernos, capaz de enxergar à noite o inimigo no oco do mundo. Nenhuma dessas lunetas me interessa.
Quero um binóculo mágico.
Um que aproxime as pessoas. Que as ajude a comunicar-se. Cada qual a olhar nos olhos da outra, em revelações da alma, dirimir mil dúvidas impostas pela separação física. Um binóculo capaz de abrir um canal de conhecimento mútuo de pontos da ciência e das artes. Ou até para as coisas banais, de que duas pessoas carecem na rotina de suas vidas, de suas almas. Canal capaz de impelir humanos ao aconchego, como faz o casal de bem-te-vi, se isso for o desejo. Desejo de dois viventes.
Sonho ter esse binóculo um dia.
Ah, se chega esse dia! Eu ficaria então bem pertinho da mulher só, que cuida das plantas, que limpa o chão, que arruma as cadeiras da varanda, que corrige provas escolares ou examina traços e proporções de retas e curvas numa planta, ah, nesse dia, com meu binóculo mágico lhe falaria em jeito meigo de quem a conhece há um tempão:
Ei, psiu, veja o ninho de bem-te-vi… bem aí na árvore em frente da sua varanda, quase ao alcance da mão!
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