Bendita letra cursiva
Por Cristina Moura
O professor de Língua Portuguesa, na maioria das vezes, enfrenta a obrigação de se dividir em três criaturas, que são distribuídas em Gramática, Literatura e Redação. Não sei dizer, de imediato, de qual área mais gosto. Admiro todas. Uma influencia a outra. Nesta crônica, em especial, quero falar sobre a terceira vertente, fruto dos maiores aperreios em concursos públicos.
O grande suplício, e pai de todos os outros, surge com a falta de leitura. Com a ilusão de que somente ler e escrever na internet seja algo eficaz, o candidato alimenta a criação de outro mundo. O papel do professor, com doses pomposas de paciência, é lembrar que livros existem e estes nos ensinam o tempo inteiro sobre regras gramaticais. Desenvolver o hábito de descobrir essas obras e, por consequência, estilos e autores, é quase um pavor para muitos alunos. Na primeira aula de redação, deixo esse lembrete, a semente plantada, com o objetivo de combater sentimentos de repulsa.
Vou tecendo cada conta do rosário, sem medo, com o máximo de cuidado que há em mim. Alguns alunos se exibem e colocam na bancada o livro que estão lendo, como se dissessem que está tudo bem. Desse tipo de personagem, apenas dez por cento já entendeu, de verdade, o que está fazendo ali. Somente para esse grupo, meu idioma português cravado de nordestinês é entendido à risca. Os outros números da porcentagem são lançados, por eles mesmos, no turbilhão do cotidiano, em ritmo de funk, rock, brega, sertanejo ou pagode.
Mesmo não querendo muito, grande parte respeita, participa e cumpre o protocolo. Tento tornar esse labirinto menos doloroso, hidratando o sonho de que todos os corações serão contemplados. Sinto necessidade de começar com o que não se pode fazer numa redação. Passo uma lista de tópicos que serão decifrados e esmiuçados nas aulas seguintes. Por exemplo: se o assunto é letra, explico sobre maiúscula e minúscula, incluindo o apelo à legibilidade. Corrigir essas construções parece uma aventura.
O teclado destruiu a beleza da minha letra cursiva. Anotações ligeiras, fazendo entrevistas, também. Como amargo isso na pele, torço o nariz para o suposto belo e exijo o básico, ou seja, que o produto seja compreendido. Não posso deixar de mencionar que encontro letras lindíssimas, bem-desenhadas, mimosas, habitadas em pesados cadernos, como se fossem objetos de uma exposição. Mas, sei que o encanto deve se exibir de outra forma, na parte da concatenação das ideias.
Não faço questão que a letra ganhe adornos, como se estivesse em convites de festa, mas devo lembrar que cada enfeite não pode ganhar a linha de cima. Outro ponto a ser enfatizado é o limite do papel, com linhas verticais dos dois lados. Isso merece muito respeito, pois cada ultrapassagem pode ser um ponto perdido. Detalhes são vitais. Cada parágrafo pede um pequeno recuo, simples, da grossura do polegar, ao ser iniciado. Deixo claro que até já fiz texto sem recuar, mas nos meus escritos, dentro do universo que me pertence. Num concurso, não. Proibido. Quanta chatice, professora. Ora, são as normas.
Todo professor que vai corrigir uma redação se depara com tudo o que é de grafismo. Uma selva de inquietações. Garranchos, como os meus, brotados da personalidade, da vivência com a palavra escrita, do processo educativo. Para esses estudos, existe a renomada grafologia. Como não domino o âmbito, o que me resta é observar o que se apresenta. Beber água é o ingresso. Respiro. Corrijo. Sublinho ou circulo o erro. Digo por que não está certo. Respiro. Pontuo. Respiro. Pronto. Sem jamais esquecer um recadinho sincero, confortável e esperançoso, no rodapé.
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