Auto de Natal
Por Mariana Moreira – A rua em frente à Catedral da cidade concentra uma significativa quantidade de pessoas que se acomoda no improvisado teatro montado para apresentação do Auto de Natal. Enquanto aguardam o inicio do espetáculo um telão ao fundo do palco exibe paisagens e imagens que nos remetem a um Natal europeizado, com casas e campos cobertos de neve. Ora, no modesto curral da Belém que acolheu José e Maria e que serve de maternidade para o nascimento do Deus Menino não temos nevascas, mas sim, uma paisagem e um clima muito semelhantes ao nosso, da região semiárida, como marcas intensas de semiaridez, sol praticamente todos os dias, vegetação rasteira e espinhenta.
As casas da terra e da gente do Deus Menino eram modestas, como simples são tantas casas da gente nossa espalhadas por periferias e campos, e personificadas em casas de taipa ou de alvenaria rudimentar, com portas e janelas rústicas e mobiliário singelo e, muitas vezes, de segunda mão.
E o Auto de Natal começa. Em reiterados momentos, atores e atrizes apresentam figurinos e performances que copiam e imitiam espetáculos da Broadway. Músicas em inglês, cenários totalmente divorciados da realidade de Belém e da nossa, de sertão semiárido. Nem mesmo José, Maria, os Reis Magos, os pastores e anjos trazem qualquer semelhança com os palestinos de ontem e hoje, que dividem muito mais afinidades estéticas com os nordestinos sertanejos, que com europeus e norte-americanos, de rostos afilados, tez branca, cabelos lisos e indumentárias adaptadas a tempos de grande duração de frio.
O espetáculo segue e me transporto para um Natal onde as músicas que anunciam e animam as visitas angelicais e de reis sejam sinfonias de forró, xaxado, baião. A manjedoura seja uma rústica e simples casa de taipa onde José e Maria dividem com os seus hospedeiros uma xícara de café de um bule de porcelana com a pintura já retocada pelo tempo e que se mantem aquecido no fumegante fogão de lenha. As roupas sejam trajes simples de vestes de algodão e trazendo como único e principal adorno um chapéu de palha, ou de couro, que protege do sol que teima em brilhar por todo o dia.
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E como este Natal me aproxima do Deus Menino. Daquele que chega anunciando o poder do amor como alimento e lenitivo contra as injustiças, as desigualdades, as opressões e tiranias que segregam, isolam, excluem, eliminam. O Menino Deus que, avesso ao amor pelo poder, desafia reinos e exércitos em nome da convivência que nos abre os olhos para a solidariedade, que nos une as prostitutas, aos estrangeiros, aos que professam outras crenças, aos que falam outras línguas e trazem outros tons de pele.
E meu Auto de Natal termina com a visita de reis e rainhas que, entre nós, seriam um cangaceiro, um morador de rua, uma mulher vitima de estupro e violência de gênero. Os presentes não seriam mais ouro, incenso e mirra, e sim, arrependimento, promessa de conversão, pedido de força e coragem de caminhada em mundos e meios criados por humanos, mas que separam muitos para quem, estes, não consideram humanos, mas tão somente, substrato relegados a marginalidade e a invisibilidade.
E o sino não mais bate na capelinha, mas sanfoneiros e violeiros anunciam em ritmos e sons, que o Menino Deus é um dos nossos tantos meninos homens sem amanhã.
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